O Meu Querido Avô João
Parece que o estou a ver, o meu avô. Chamava-se João Pena. Movimentava-se pela casa como uma sombra importante, imprescindível. Era respeitado por todos, familiares e amigos. Professor idolatrado, competente e atento à plena educação e formação dos seus alunos, nunca agia manifestando as suas mais íntimas efusões de afecto, mas elas estavam lá, sempre presentes. Mostrava autoritarismo, segurança nos seus gestos, mas era doce e terno, camuflando uma imensa simpatia e preocupação nas emoções e nos sentimentos, para com todos. Era raro vê-lo a sorrir ou em situações de grande tumulto ou hilaridade, comedido e sério que era. Abraçara o seu mister de professor, para dedicar-se inteiramente a ele, de alma e coração.
Relembro-o, agora, fugazmente. Prendera-se a sua fugidia imagem a mim, com contornos de perpétua adoração e veneração. Vejo-o sempre de cigarro na boca, expelindo densas fumaças com regozijo e satisfação. O seu cinzeiro de prata, que era só seu, repleto de beatas apagadas e, que agora, guardo carinhosamente comigo por oferta da minha mãe. Tinha dignidade, o meu avô, evidenciada nos actos que tomava, agindo, todo o tempo, de forma sensata e sóbria. A sua dignidade era respeitada porque respeitava a dignidade dos outros. Vivia preso à família e, ainda hoje, parece-me vê-lo esboçando um ténue sorriso de carinho só para mim e ouvir, pelas mais diversas vozes de outros, louvá-lo e enaltecê-lo pela sua conduta intocável e bela em todos os rostos conhecidos ou desconhecidos, na cidade que era sua e que eu habito. Meu avô conquistara os corações das pessoas e defendera valores relevantes ao seu bem-estar e à sua vida em felicidade, que jamais seriam esquecidos. O meu avô João, para os outros, o Professor Pena, eternizara a sua obra de amor, dedicação e solidariedade que jamais serão ignorados, imortalizados que serão pelo tempo fora, sem desgaste pela inércia avassaladora de ideologias de vanguarda das novas gerações. Disso tenho a certeza inequívoca, sentida e verdadeira. Meu avô João tinha sempre crianças por perto, mas não lhes sorria, amava-as com a sua seriedade, com o seu carácter de figura de bem. Amava-as tão intensamente que se esquecia de si próprio ou do sorriso que guardava dentro de si, só para elas. O meu avô abraçara uma capa transparente e pura, dotada de um fulgor amistoso e afável que todos admiravam, mas não sei se compreendiam. Eu compreendia. Eu vivia. Eu vivia nessa capa como todas as crianças viviam. Era só para elas e, isso, era suficiente. As pessoas, as outras pessoas perguntavam e intrigavam-se, quando perguntavam onde estava o sorriso do meu avô. Eu sorria e ele mostrava-se sério, parecendo indiferente e esboçando um sorriso terno e agradecido pela minha cumplicidade. Um sorriso mais sentido no seu interior, menos exterior, mas o sorriso estava ali e eu via-o, com uma nitidez e alegria imensas. É assim que o revejo. É assim que sinto o meu avô! Guardarei sempre com respeito e amor a imagem do meu avô João, para os outros, Professor Pena.
Não esqueci as suas sestas. Dava-me cinco tostões e as suas sestas eram as minhas sestas. Só conseguia adormecer com os netos no seu coração. Quando me parecia que ele adormecera saia furtivamente da cama, sem fazer ruído, agarrando com muita força os cinco tostões na minha mão, pequena ainda, ao mesmo tempo, que escondia a minha recompensa e o meu pequeno tesouro, amplamente merecidos. Ele sentia-me abandoná-lo e, então, sorria e adormecia feliz, enternecido pela companhia valiosa que lhe fizera.
O meu avô intrigava-me porque nunca entrava na cozinha. Compreendi só mais tarde a razão: Não queria atrapalhar! Respeitava as empregadas profundamente e elas respeitavam-no também, com alguns indícios de temor associado, pelo rosto austero, imponente, exigente, mas respeitador, quando se lhes diria, o que era raro. Sentiam, então, uma ligeira tremura que passava rapidamente. Conheciam-lhe o bom coração oculto e tinham-no em consideração. Ele parecia ignorá-las, o que não correspondia à realidade.
Ao jantar, quando se sentava à mesa, no lugar do topo, mandava acender todas as luzes, exclamando, com convicção:
- Acendam todas as luzes, enquanto eu estiver vivo! Quando morrer, para mim, já não fazem falta! Enquanto estiver aqui quero tudo aceso.
E a claridade das luzes propagava-se por todos os cantos da casa e ele parecia satisfeito, feliz! Já, quando dormia no quarto ou descansava nele a obscuridade total enchia-o plenamente. Queria a penumbra completa, se calhar para lhe facilitar o descanso ou para ter paz absoluta para consigo próprio, naquele recanto íntimo, só dele. Digo, que encontrei mais tarde esta situação perpetuada em minha mãe e em mim mesmo.
Quando o meu avô morreu apagou-se uma chama no meu olhar e no meu coração. Não compreendi bem, mas senti que uma parte dele encarnou em mim. Alguma coisa ficou dele em mim. Não tive um desgosto, mas senti um orgulho desmedido em tê-lo conhecido e partilhado do seu afecto, do seu amor e do seu forte carácter que impunha em tudo o que fazia. Amá-lo-ei sempre, nem que seja em sonhos, o meu avô João, para os outros; Senhor Professor Pena! A sua sombra baila-me cá dentro, no pensamento mais escondido do meu ser, com pena de ele não ser eterno, pois, há certas pessoas que deviam ser eternas, sempre presentes em nós, pelos actos nobres, pelo temperamento, pela entrega aos outros. E ele era uma delas. Se, ao menos, lá no alto, Deus ouvisse e concedesse essa dádiva. Só me apetece dizer, ternamente:
- Até sempre, querido avô!