Eu era raro entrar na cozinha. Fazia-o somente para pedir água. Era surpreendente aquela água, sempre muito fresca, armazenada numa vasilha de barro preto comprado em Bisalhães, que lhe dava um paladar alucinante e desejado. Sempre vi aquela cozinha muito fria e com uma ou duas empregadas entregues a ela, embora não muito atarefadas. Vejo-as sempre sentadas em bancos de madeira tosca, conversando baixo e com um ar de fadiga. Não recordo os seus nomes, não por desprezo, mas porque não cativaram muito a minha atenção, pois, era muito pequeno. Lembro-me, embora vagamente, da Grabelina. Vinha de Abambres com a Tia Judite, a quem contava a vida, a sua amargurada vida. Estava sempre cabisbaixa e era idosa e mouca como a minha Tia. Via-a com um ar triste e desolado. Quando vinha, comia fartamente e matava ali a sua dor e o seu infortúnio. Nunca se aventurava a estar noutro aposento da casa. Via-a sempre na cozinha ou não a via. Parece-me também que falava em surdina com a minha avó ou com a Tia Judite em desabafos necessários e que faziam parte da sua malfadada existência. Sim. Lembro-me da Grabelina e até me lembro quando ela morreu, quando findou a sua vida inconsequente e sofrida.
A Grabelina fez parte do meu memorial e do memorial da minha família, em casa da minha avó Maria, mais concretamente, na cozinha da minha avó Maria, de onde nunca saia.
Já em casa de meus pais, relembro-me de outro episódio com a minha Tia Judite. Eu e o meu irmão João, adorávamos dormir. Dormir até quando nos deixassem. Vivíamos num apartamento, junto do Mercado Municipal de Vila Real. Como era habitual, em dias de feira, a Tia Judite deslocava-se até lá, sempre escorreita e desejosa de lá comparecer, ao mesmo tempo, que aproveitava para nos visitar. Ora, um dia em que a feira acontecia subiu a escadaria de casa de meus pais e bateu à sua porta com uma energia desmedida, que não passara despercebida aos vizinhos, como sempre o fazia, e chamando muito alto por nós. Todos ouviram, só nós é que não. A sua voz ecoou por todo o prédio e aquela habitação até quase tremeu, dado o impacto provocado pelo seu chamamento e pelo barulho manifestado. - Manel, João, sou eu. Abram a porta! - Gritou, com todo o seu ímpeto posto na voz. Bateu uma, duas, três vezes. Chamou uma, duas, três vezes e o seu grito fez-se ouvir por todos os moradores que aquela hora estavam nas suas casas. Acorreram todos, aflitos. A Tia Judite virou-se para eles e disse, trémula:- Só podem estar mortos lá dentro! Estão mortos, de certeza!
Toda aquela gente entrou em pânico, pensando em como abrir aquela porta e como estaríamos nós.
Em voz de comando, a minha Tia Judite ordenou: - Rebentem a porta! Estão mortos! Estão mortos, de certeza!
Imediatamente, se juntaram mais pessoas e a porta foi mesmo arrombada e toda aquela gente, conhecida e desconhecida, entrou pelo nosso quarto dentro. Acordamos de imediato, surpresos e amedrontados. Nunca tínhamos visto tanta gente no nosso quarto. Notei-lhes na expressão um aspecto e um semblante de desilusão, como que dizendo:-Afinal estão vivos! Estão vivos e bem vivos! Que chatice!
De imediato, toda aquela multidão debandou inconsolável, perante a falta de acção no desfecho desta situação e a minha Tia Judite nem nos recriminou e só exclamava, emotiva: - Era o sono da morte! Era o sono da morte!
E, foi assim, que entrou em nossa casa!