Um Professor Inesquecível
O Doutor Montes, alcunhado por nós de Bica, era o nosso Professor de Moral e Religião no Liceu de Vila Real, agora denominado Escola Camilo Castelo Branco. Tenho a vaga sensação que nunca soube que o tratávamos por aquela alcunha.
Era um senhor imponente, bem estruturado fisicamente e que se mexia atrapalhadamente na sala de aula, embora tentando sempre manter a sua compostura. Nunca estava parado e o seu olhar percorria, em pouco tempo, tudo o que nela se passava. Tentava ser eloquente e dominador perante nós, esforçando-se por cativar o nosso apreço e interesse pelo que dizia. Era padre e contava-nos imensas histórias que aprendera no Catecismo e na Bíblia ou fora destes.
Penso que o importante para ele era manter-nos atentos e silenciosos, ouvindo os seus recatados relatos, a maior parte das vezes, muito exagerados e desinteressantes. Quando, já sufocados pelas suas invenções e pela apurada imaginação que impunha nas suas histórias nos distraíamos, berrava com toda a sua energia, esbracejando de aflição, muito colérico, ruborizado e, assomado de fúria, tentando captar de novo a nossa atenção perdida.
Nada havia a fazer! O conflito instalava-se na sala de aula que se tornava numa confusão apoteótica, em que ninguém se entendia. Falávamos todos ao mesmo tempo e sem respeitar o código de boas condutas que ele tanto apregoara, tornando-as anestesiadas em saco roto.
A aula redundava na anarquia total! Era, então, que as nossas fortes vozes de adolescentes se faziam ouvir, uns decibéis muito acima do normal, deixando-o profundamente assustado, prostrado na sua incapacidade de controlar a situação e preservar o respeito que ele nos exigia, em relação a si.
Quando a acalmia chegava, chegava também a acalmia dele. Creio que naquele espaço de tempo, entre a barafunda e a acalmia, ele rezava, rezava convictamente, ansiando com esperança que o poderio celestial actuasse eficazmente, na resolução do problema da aula. Ele, que era padre, não tinha outra solução para se apaziguar e reconfortar das nossas enérgicas investidas verbais que não conseguia suster.
Era, então, que a aula continuava, como se nada de mal tivesse ocorrido.
E, continuava a contar histórias fantásticas e, também, assustadoras, nascidas na sua fértil imaginação e criatividade.
Regava! Regava!
Regava, no nosso entender e na nossa forma de as encarar e compreender.
Era demais! Já podem imaginar porque lhe chamávamos o Bica.
E puxávamos as calças até ao joelho, assinalando que as histórias do Bica nos encharcavam, pois, regava imenso, atolando-nos de água, muita água que já nos chegava até aos joelhos. Coitado! Ele não se apercebia de nada e, se o percebia, fazia por ignorar. Só quando tocava para a saída suspirávamos de alívio, fartos das suas histórias.
Era, então, que ele nos via com as calças puxadas até ao joelho e acenava com a cabeça sem perceber, em sinal de desaprovação e censura.
Todos, sem excepção, passávamos em frente dele naquela postura, rumo acelerado até à porta salvadora. Metia a cabeça entre as mãos, inconsolável. Nunca nos perguntou o porquê daquela atitude, mas penso que desconfiava e percebia. No entanto, nada o fazia alterar a sua maneira de conduzir as aulas e continuava sempre a regar, a bem dizer, regava imenso.
Recordo que um dia, tinha tocado para a entrada na sua aula. Já nos aproximávamos da porta com as calças puxadas até aos joelhos, perante o seu olhar desconsolado. Sentamo-nos nos nossos lugares, como era hábito.
Por uns brevíssimos instantes o silêncio pairava ali.
Sem entender bem no que se ia meter, o Bica virou-se para nós e disse, peremptório:- Quem não quiser estar na aula pode sair que eu não marco falta!
Relembro-me que foi como um tiro salvador soado nos nossos propósitos. A turma toda, todos nós, corremos para a porta que nos separava da felicidade.
Num ápice, o Bica desalentado e incrédulo ficou só!
Todos havíamos saído! Nem um, um que fosse, permaneceu na aula.
Creio que constatou que algo não corria bem na sua maneira de ensinar e nos conduzir.
Não sei se é vivo, mas fica aqui a recordação das aulas do senhor Doutor Montes, a quem nós alcunháramos de Bica.
Fica a sua lembrança exemplar de homem e de sacerdote que muito respeito, mas, cujas aulas deixaram muito a desejar, no meu tempo de aluno do Liceu desta cidade que eu frequentava.
Pena.junho.2007