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Monday, November 13, 2006

A Paixão Infantil Circense

A Paixão Infantil Circense

Na cave da casa da minha avó Maria aconteciam as coisas mais surpreendentes, mais insólitas, provocadas pela nossa fértil imaginação e intensa criatividade infantis. Era eu, o meu irmão, o Alfredinho e, às vezes; os meus primos: o Raul e o Augusto. Como não nadávamos propriamente em dinheiro, arquitectávamos os mais ardilosos estratagemas para o obter. De tempos a tempos encenávamos, empenhadamente, um espectáculo de circo. Sim, porque nós também tínhamos as nossas necessidades económicas e os nossos compromissos monetários, ora, com as guloseimas, ora, com as pastilhas elásticas, ora, com infindáveis passeios, (por vezes arriscados e perigosos, como eram, por exemplo, a ida a pé através dos carris do caminho de ferro à quinta do Alfredinho Bem - Posto, em Alvações do Corgo, colocando o ouvido encostado à linha para pressentir se vinha algum comboio ou, ainda, atravessando uma ponte, onde este passava, suspensos pelos braços), com o intuito de fazermos um piquenique. Ora, isso, também tinha os seus custos!


Tínhamos nessas alturas de comprar o farnel e isso implicava estarmos munidos de algum dinheiro. A minha avó Maria e mesmo a minha mãe nunca souberam destas investidas à quinta do Alfredinho, quero querer que nem a mãe deste. Quase ninguém conhecia as nossas peripécias, por vezes, arriscadas e plenas de perigosidade.
Mas, regressemos novamente ao circo.
Começávamos por fazer a publicidade, anunciando o espectáculo e, era eu, que geralmente, fazia os cartazes que colocávamos na nossa rua ou distribuíamos às pessoas mais conhecidas. O importante era informar aqueles que nunca tinham assistido porque se o conhecessem recusar-se-iam logo a presenciá-lo, por razões que oportunamente se perceberá. De seguida, atribuíamos os encargos e os papéis que iríamos desempenhar. Todos éramos os palhaços. Nunca escrevíamos o guião das piadas por preguiça e, isso, causava-nos dissabores, pelas razões óbvias: Ninguém se ria! Isso também não era o importante, como nas outras prestações também não o era, pois, o que era importante era o dinheiro arranjado, além de que os assistentes, neste caso, as assistentes, eram compreensivas e nunca exigiram o reembolso do bilhete. Havia também o trapezista ou os trapezistas, mas nunca conseguíamos esticar bem o arame, pelo que esta cena tornava-se algo confusa e aldrabada, transformando-se numa prova de equilíbrio com o arame colocado no chão. Não tínhamos culpa! O espaço era diminuto e o arame por vezes era curto e não chegava de um lado ao outro e, se chegasse, duvido se algum de nós não partiria a cabeça. E isso, de certeza que ninguém queria, ainda por cima, as mães e as conhecidas de todas nós que assistiam, sentadas confortavelmente nas escadas, algo poeirentas da cave, conversando umas com as outras todo o tempo, alheadas do que se passava, não apreciariam nada. Perguntavam a todo o momento se faltava muito para acabar, pois, não prestavam atenção a nada. Por falar em assistentes, elas resumiam-se à minha avó, à minha mãe, à D. Gertrudes, à vizinha do lado, a D. Maria José e à Arminda, uma espécie de governanta da D. Maria José. Como se poderá perceber facilmente tinham que, forçosamente, ser compreensivas, zeladoras do nosso bem-estar e, agora, percebe-se porque nunca pediram o reembolso dos bilhetes. Isso era muito animador e estimulante para nós. Era um importante factor a ter em conta!
O espectáculo decorria dentro da normalidade possível, até que chegou o momento final, o momento crucial, tão ansiado por todos os que estavam naquela cave. Encostei- me naturalmente a uma das paredes da cave, imóvel e fechei os olhos. Era a cena das facas! Todos repararam que o meu irmão tinha na sua posse quatro facas, retiradas às escondidas da cozinha de minha avó e, agora, tornadas evidentes, reluzindo bem afiadas e, que ele, me iria atirar, rezando a Deus para não me acertar. Todos compreenderam, sem fazer esforço! As senhoras zeladoras do nosso bem-estar pararam a conversa e gritando: - Parem!, Parem! Ainda matam o rapaz! Isso não!, invadiram a pista, perante o desgosto de todos nós. Por sua ordem o circo terminou ali, naquele instante. As facas foram retiradas ao meu irmão, sem ele compreender muito bem o porquê, pois, sempre gostara muito de mim e era muito meu amigo, amigo mesmo do peito, protector e tudo o mais, fazendo regressar as pessoas presentes à normalidade e ao sossego. Apesar da emoção sentida e das controversas situações, o importante é que tínhamos conseguido o dinheiro para os nossos gastos!
Toda a gente suspirou de alívio! Esteve prestes a acontecer um homicídio, sem culpa dos artistas daquele insólito espectáculo circense, mas valioso às nossas bolsas desfalcadas e desprovidas do necessário ao nosso sustento infantil. Sim! Também tínhamos as nossas necessidades, imprescindíveis e inadiáveis!
Pena, Janeiro 2005