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Wednesday, November 15, 2006

O atropelamento inevitável de que fui alvo

O atropelamento inevitável de que fui alvo


Na minha turbulenta infância tudo corria mal para mim. Fui atropelado! Atropelado por um respeitador cidadão que conduzia muito bem. Não estou a brincar conduzia mesmo muito bem! Tudo ocorreu quando o crepúsculo se punha já no horizonte. Ocorreu, mesmo defronte da enorme janela de casa da minha avó, na Avenida Marginal que serpenteava e dava cor à cidade de Vila Real. Dali divisava-se o rio lá ao fundo, as suas margens e a ponte de ferro. Aquela janela tinha servido para nas tardes sossegadas de Verão contarmos os carros que passavam e anotar as suas marcas e as suas matrículas. Contávamo-los marcando um traço quando passavam. Podíamos no final do dia emitir os seus livretes de propriedade fingidos se tais nos fossem pedidos, como numa verdadeira repartição para o efeito. Não sei sinceramente se estaríamos conotados também com os disciplinados e sempre cumpridores cantoneiros existentes no meu tempo, na sua azáfama diária que era aquela, ou se com bons polícias esperando descortinar algum automóvel furtado. Penso que éramos um pouco de todos eles. Verdadeiramente só sei que era ali que passávamos grande parte do nosso tempo, ainda por cima com a aprovação sincera da minha avó Maria que se embrenhava nas malhas, na lã ou nos novelos. Talvez pensasse que assim lhe daríamos alguma tranquilidade e paz de espírito. Olhava-nos demoradamente por cima dos óculos, sorria e aprovava. Penso que gostava de ver-nos por perto, sobre a sua alçada protectora e, inequivocamente, atenta à nossa traquinice e inquieta conduta. Por vezes desconfiava e inquiria-se se a nossa postura não esconderia alguma doença digna de cuidados médicos. Mas, não! Estávamos bem de saúde, com uma saúde de ferro que não lhe passava despercebida e a alegrava imenso. - Afinal são normais como as outras crianças. - Pensava, num misto de desconfiança e de boa disposição.


As preocupações e desconfianças da minha avó eram bem justificadas. Ela tinha razão nas suas dúvidas quanto ao nosso comportamento.
Foi dali que a minha avó presenciou o meu atropelamento. Fôra de todo inevitável! Não podíamos estar quietos.
Nesse dia das nossas rotineiras e normais brincadeiras, em pleno asfalto do passeio da Avenida Marginal, aqui e ali adornado com canteiros de onde despontavam formosas árvores, jogávamos ao bate e fica. Julgo que ainda hoje se chama assim. De súbito, perdi a calma, eu que a tinha até em demasia e atravessei a estrada a correr sem antes observar se o podia fazer. Foi o suficiente! Um automóvel que circulava de forma atenta e prudente e passava ali, pum! Acertou-me em cheio. Voei uns dez metros pelo ar e aterrei no alcatrão, sem contemplações. Toda a gente acorreu aflita e aos gritos. Todos menos eu! Levantei-me e vislumbrei a minha avó reclamando uma ambulância e acenando uns gestos esquisitos que me pareceram de alguém totalmente em pânico, desorientado. Não é caso para tanto! Afinal não morri! Estou vivo e aqui! Que será que ela estará a imaginar?- pensei, para comigo com surpresa e admiração. Ela é que não conseguia parar de gesticular freneticamente apelando e ordenando a todos por auxílio imediato. Quando me levaram para casa da minha avó pelo meu pé telefonaram, incomodaram o meu pai, entretido a jogar dominó no saudoso café Excelsior, presentemente inexistente não consigo entender o porquê, onde já o meu avô marcara assídua presença.
Passados longos instantes, apareceu embebido na sua calma e boa disposição para me levar ao hospital. O condutor do automóvel que ia para Aveiro é que estava inconsolável, honesto e humano que era e isento de culpa. Meu pai compreendeu de imediato a sua preocupação e calmamente, como era seu hábito, disse-lhe, com clareza e bons modos que prosseguisse a sua viagem, pois, a culpabilidade do senhor era nula e ele trataria do assunto. A muito custo, meu pai lá conseguiu que ele partisse. O prezado senhor fez questão em deixar um cartão com as suas referências pessoais e inconsolável despediu-se e prosseguiu viagem. Meu pai, que era um bom pai acercou-se de mim, pegou-me ao colo, meteu-me no carro e levou-me para o hospital, sempre sorrindo e animando-me com convicção que felizmente, não acontecera nada de grave. Meu pai compreendia-me totalmente! Não sei se queria regressar ao dominó, mas penso que não.
No hospital fui observado, tendo os médicos diagnosticado que eu não sofrera traumatismos ou males maiores necessitando apenas de algum repouso e uma semana de restabelecimento na cama. Era o que eu queria ouvir! Uma semana sem ir à escola! Quando entrei em casa com algumas pisaduras visíveis no corpo, a minha mãe olhou-me surpreendida e perplexa de desassossego. Contamos-lhe o que sucedera e acalmamo-la. Meu pai deitou-me na cama e aí permaneci dolorido e esperançado de que uma semana de molho curaria todos os males, mas também que não aturaria os professores, nem as suas palavras de repreensão constante durante todo aquele tempo estipulado. Este facto alegrou-me imenso.
No dia seguinte, quando acordei doía-me tudo. Permaneci deitado o dia todo, blasfemando incongruências sobre o meu estado e constatando que afinal não era lá muito agradável permanecer deitado ali durante aquele período de tempo todo. O dia lá acabou por passar e no dia seguinte comecei a usufruir de alguma alegria no meu estatuto de doente. Sim, eu tinha que ter algumas regalias, senão seria preferível ir à escola ou então fazer algumas coisas indevidas que me iam no sangue e na alma, sem o poder evitar.
Nisto, bateram à porta. Era o Carvalhinho de Matos Torres. Eu tratava-o assim. Tratava-o sempre assim, pelo seu nome todo. Trazia chocolates, doces, pastilhas elásticas e tudo o mais que comprara para me presentear.
O Carvalhinho de Matos Torres seria a minha vítima! Escolhi-o porque estava doente e apesar das melhoras decidi que estava muito doente. Se o que ele me trazia era porque estava muito enfermo, então, o meu restabelecimento duraria não uma semana, mas duas. Todos os dias me levava doces, bolos e chocolates e me perguntava se estava melhor, ao que eu respondia que ainda sofria muito e que aquilo tudo que ele me levava ajudava bastante na minha convalescença. O rapaz ficava preocupado e acorria com presentes a toda a hora. Foi, então que a minha mãe detectou a farsa e o meu desplante face ao Carvalhinho de Matos Torres. Proibiu-lhe a entrada em nossa casa com determinação e, concluída que fôra uma semana, enxotou-me em direcção à escola. Tinha terminado a minha doença! Tinha terminado o meu sofrimento! Sempre admirado e, incompreendido pela atitude e pelo gesto de minha mãe, pedi desculpa ao meu amigo e jurei nunca mais brincar com as doenças e portar-me bem em relação ao estado de saúde das pessoas. Tinha aprendido a lição na sua plenitude!