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Monday, May 07, 2007

A Minha sempre Eterna Irmã




A Minha sempre Eterna Irmã

A minha irmã era de uma ternura e pureza deslumbrantes.
Chamava-se Paula Cristina, mas todos nós lhe chamávamos a nossa Menina.
A sua idade distanciava muito da nossa, de mim e do meu irmão, daí este tratamento carinhoso e emocionalmente elucidativo e bem sugestivo do que sentíamos por ela.
Parece que ainda a vejo no berço, aquela encomendinha intocável, frágil como era nesta sua primeira aparição ao mundo, mas com uns olhos muito belos e cintilantes faiscando de curiosidade e percepcionando tudo à sua volta, com uma lucidez e uma presença surpreendentes.
Vivos, intensamente vivos e reluzentes eram aqueles olhos.
Era assim que nós a víamos e era assim que eu a via. A nossa Menina!
O seu nascimento mudara totalmente a nossa existência. A existência de todos nós.
Fora a surpresa. Fôramos preparados, mas mesmo assim fora tudo inesperado, demasiado inesperado! Fora um acontecimento único, verdadeiro, intransmissível!
Só nosso.
Mais tarde a minha irmã tornou-se para mim, mais que uma irmã, mas uma companheira e uma dedicada amiga sempre ao meu lado e que se preocupava comigo e com o meu bem-estar.
Este solidário sentimento também o sentia inequivocamente por ela, independentemente dos seus gestos, das suas atitudes e das suas convicções.

Compreendia-a e ela parecia compreender-me.
Para mim nunca passou dos quinze anos e hoje uma adulta, sinto que tem os mesmos quinze anos.
Nunca a vi cavalgar no tempo, envelhecer, pois, tem a candura e a presença de quinze anos, nem mais nem menos.
Apesar de ter crescido e ter-se tornado uma mulher, entre a amargura e a felicidade da vida, ela é a nossa Menina, a minha Menina, a Menina de todos nós!
Relembro a sua infância e a minha infância incontornáveis no tempo, repletas de amor fraternal à luz das transparentes brincadeiras a que nos entregávamos e assumíamos com um porte e uma seriedade infantis.

Recordo um boneco que era dela.
Um boneco que ela amava, idolatrava e se tornara imprescindível junto de si e para onde quer que fosse.
Recordo o nome que ela lhe pusera. Chamava-se Joni.
Ele fazia parte dos seus sonhos, dos seus projectos, dos seus sentimentos e dos seus constantes pensamentos.
O Joni entrara na sua vida, mas entrara com um amor intenso, inseparável. O Joni tornara-se um filho, um anjo que nascera para viver sempre com ela, em todos os seus momentos.
Amava-o.
Embalava-o quando tinha sono. Alimentava-o quando tinha fome. Importava-se com ele quando era preciso! Era tudo para ela!
Nunca me intrigou a presença deste boneco na vida dela.
Simplesmente pensei que deveria merecer toda a sua atenção e que deveria ser bom pela dedicação que ela lhe prestava.
Passava horas e horas a fio adorando e mimando o seu protegido, direi mais, o seu filho, o filho a quem todas as mães dedicam atenção e carinho, procurando salvaguardá-lo de todos os perigos.
Ainda hoje me parece vê-la ostentando o seu valor precioso, a sua dádiva celestial, o seu imenso tesouro.
E eu compreendia-a e encarava-o com consideração e respeito.
Penso que só ela o sentia verdadeiramente como seu, só o sentia para si, sem admitir interferências de ninguém. Aproximava-se das pessoas, mas encostava-o ternamente contra o seu franzino peito numa atitude de posse total. Afinal ele era dela, só dela e nada mais interessava.
Afinal, a magia do amor estava neles os dois, intrinsecamente envolvente, de forma seriamente comprometedora e como só eles sabiam, secretamente, sussurrando segredos entre si, confidências importantes que eram só suas.
Não me surpreendia que o Joni fosse careca, fosse zarolho, fosse maneta ou fosse perneta. Surpreendia-me isso sim, o facto de todos se preocuparem.
O Joni, o amor da minha irmã, era tudo isto e ela amava-o, amava-o com toda a ternura e os outros, a opinião dos outros não lhe interessava.
Ele era dela! Só dela!
Só isso interessava, fosse ele como fosse!
Se calhar amava-o por ser assim.
Isso nunca ninguém o soube, mas penso que ela também não o diria a ninguém! Entrara na sua vida e era parte integrante dela. Isso chegava! Chegava para a tornar feliz! Imensamente feliz!
Aconteceu um dia.
Falaram-lhe de uma pequena cirurgia num hospital famoso de bonecas em Lisboa.
Minha irmã não disse que sim, nem que não.
O Joni melhoraria, ele que não estava doente, mas se era para o bem dele havia que fazer tudo e isso era o mais importante.
Levou-se o Joni para Lisboa para fazer uma espécie de triagem, ver as possibilidades de sucesso da operação.
Marcou-se a data e os médicos combinaram o que se iria efectuar no bloco operatório.
Minha doce irmã concordou com tudo. Não fez objecções a nada. Ela queria o melhor para ele.
Combinaram-se detalhes e marcou-se a hora.
O Joni foi operado.

A intervenção correu mal, ele não resistiu e acabou por sucumbir.
Nada havia a fazer. Minha irmã não chorou uma lágrima, mas sentiu um aperto interior que era só dela, do seu íntimo mais profundo.
Tudo tem o seu fim, mas aquele marcou um capítulo importante na sua vida infantil.
A partir daí recusou todos os bonecos.
Lindos! Esplendorosos! Bonitos! Normais!
Cresci e ainda agora relembro o seu amado Joni num misto de ternura, carinho, mas também de mistério.
Um mistério que permanece e me faz sorrir. Afinal, algo perdurou em mim: a magia do seu encanto, o encanto da minha irmã e dos seus belos pensamentos e sentimentos em relação a tudo isto.
Em relação à vida e à morte.
Em relação aos afectos e ao encanto da existência, não só nos momentos bons, mas principalmente nos maus momentos.
A amizade e a mais envolvente persistência, que permanece nela e em mim, na sofrida disputa perante a vida, com Joni ou sem Joni.
Mas, no fundo com um valor e importância afectiva desmedida!
Pena, Janeiro de 2005