Fascínio! De fascínio era a gruta. A gruta do Senhor Nóbrega! Ela impelia-nos! Chamávamo-nos! A gruta do pintor causava-nos temor, mas também arrastava-nos a todos para lá, sem se perceber bem o por quê. Era a aventura! Conseguíamos ludibriar o Nóbrega, descíamos a correr a escadaria de acesso e mergulhávamos na escuridão silenciosa daquela gruta. Aí, sentíamos a água até aos joelhos e embrenhávamo-nos no seu mistério, sonhando e sentindo as mais sensacionais emoções, exacerbadas pela nossa idade, ainda curta. Por vezes, imaginávamos as mais inconcebíveis narrativas, as mais surpreendentes histórias sobre o lugar. A certa altura o túnel desembocava numa espécie de cruzamento, onde diziam terem-se descoberto umas moedas valiosas. Isso incentivava a nossa conduta aventureira. Havia também uma velha lápide funerária, onde se dizia ter morrido alguém desconhecido, pois, o nome nela inscrito estava imperceptível. Interrogávamo-nos sobre o seu paradeiro ali, o que cimentava cada vez mais a nossa angústia, ao mesmo tempo que nos incentivava a explorá-la. Tínhamos bem presente em nós que aquele local estava abandonado e que havia perigo nos poços de água profundos e escuros que podiam engolir-nos nas suas trevas. Tremíamos pelo frio sentido ali, mas também por encontrarmos a angústia em todos nós, cada vez que caminhávamos mais para o seu interior. O nosso coração parecia estalar pela ousadia de perturbar aquele lugar, um espaço que não era nosso, mas que defenderíamos e conheceríamos até à morte.
O suposto guardião da gruta dos nossos sonhos era o Nóbrega. Nunca o entendi verdadeiramente. A sua postura fingia ignorar-nos ou ignorava-nos mesmo. Havia nele algo de sofrido, ausente do mundo. Sentava-se à porta de sua casa num banco de madeira tosca e pintava. Expunha os quadros ao longo daquela rua, mas nada fazia para os vender. Olhava-os demoradamente. A sua Arte parecia absorvê-lo, extasiá-lo. As suas obras pareciam deliciá-lo, mas ele não estava ali, disso tinha eu a certeza absoluta. Por vezes, imaginava-o em sonhos, montar num cavalo alado e cavalgar rumo a destino incerto, distante dali, até ao infinito. O pintor não tinha corpo, habitava somente o espírito e a alma! Mesmo a gruta que era sua, estava certo, que ele não a conhecia. Quando passávamos com medo dele, nunca proferiu um gesto, uma palavra. Intimidava, somente, não sei por quê. A par disto, nunca ouvi a sua voz, pois, não articulava um som, uma sílaba, uma letra, pelo menos que saísse para o exterior de si. Talvez falasse com o seu interior! Nunca consegui sequer, ler-lhe os olhos para sentir um pensamento, uma emoção, pois, quando passávamos furtivamente, estava sempre de costas viradas para nós.
A avó Maria nunca soube das nossas investidas ali. Quando alguém falava do pintor sorria com ternura e abraçava o olhar, de forma aprazível e misteriosa.
Hoje, sinceramente, penso que o guardião da gruta estava, somente, na nossa imaginação, na ilusão acalentada e consolidada dos nossos sonhos inocentes, doces, infantis.