Naquele dia, estou convicto que ninguém teve a culpa. Sei que o Senhor Pastor tombou ao encontro do chão com estrondo! Este senhor já idoso era funcionário da Escola Técnica de Vila Real, onde eu fazia por estudar.
Eu era um bom aluno, um filho que nunca dera problemas aos pais neste domínio e os enchia de orgulho e de alegria. Sabia quando deveria estudar e quando deveria brincar. Creio que as provas de responsabilidade os faziam depositar em mim toda a confiança do mundo. Era terno e carinhoso quando o devia ser. Era forte e determinado nas minhas convicções quando pensava serem oportunas. Não havia nada a apontar-me! Vivia o quotidiano, como qualquer adolescente da minha idade. A diferença que existia destes era que tinha propensão para os desacatos e conflitos, em que nunca me sentia como o culpado. Numa frase: Estava sempre a fazer asneiras, embora nunca as assumisse como minhas.
Estava sempre lado a lado com elas, fazendo com que todos redobrassem de controlo e atenções. Eu não via motivos para isso, mas era lá com eles.- pensava, resoluto e decidido para comigo próprio.
A escola que eu frequentava era um edifício novo, arejado e surpreendentemente limpo e moderno. Os seus espaços eram convidativos a um são convívio entre toda a comunidade educativa. Encontrava-se rodeado por frondosas árvores e canteiros resplandecentes de flores, cuidados com esmero, por entre os bancos abundantes, aqui e ali, apelando a que alguém se sentasse, respeitadores das conversas que escutavam.
Esta escola e o que lá se passava eram um dos orgulhos da cidade de Vila Real, da minha linda e confidente cidade de Vila Real, pois, só a ela e a Deus entregaria os meus mais íntimos segredos, ciente que os guardariam no seu regaço, eternamente, sigilosos do dever cumprido e da incumbência de os preservarem e esconderem para todo o sempre. Aí permaneceriam seguros e salvaguardados num mutismo profundo, permanentemente ignorados, adormecidos e desconhecidos. Confiava neles, absolutamente! Confiava neles, totalmente!
Contudo, nesta instituição educativa havia regras a cumprir, como em todas que se regulam pedagogicamente por rigorosas normas estipuladas para serem seguidas, preservando a sua integridade, o seu bom nome, evitando que a confusão se instalasse, podendo esta, desmoronar os actos educativo e formativo num ápice e, que ninguém com bom senso, desejaria assistir ou presenciar, como factores negativos sufocantes, evidentes e, que não se quereriam ver consumados, no carácter sincero e competente dos seus intervenientes mais directos.
Tudo aconteceu naquela manhã sombria por entre lágrimas de chuva reais que caiam em catadupa do céu, repleto de nuvens acinzentadas.
Como devo explicar, naquela escola de paredes alvas e luzidias, existiam duas entradas, uma para as meninas, outra para os rapazes. Eram perfeitamente distintas e resolutamente identificadas como certas e necessárias.
Vínhamos em grupo, como já era usual e atrasados como também já era hábito. Tentávamos freneticamente avançar o mais rapidamente possível, acelerando o passo. A chuva batia-nos nos rostos e encharcávamo-nos a roupa que trazíamos vestida. Éramos para aí uns sete ou oito. De súbito, inconscientemente e impensadamente propus-lhes que encurtássemos a distância que nos separava da sala de aula. Só assim resolveríamos o nosso problema. Eles assentiram de imediato. Tínhamos que saltar o portão de entrada da escola destinado às moças, o que era completamente proibido, interdito e mesmo condenável. Não hesitamos! Escalamos o portão com agilidade e desenvoltura e dirigimo-nos ao encontro da porta exterior, selada e fechada, quase hermeticamente, ao acesso de rapazes. Falta transpor esta, a mais difícil e a mais rigorosamente vigiada.- pensei, apreensivo, mas acreditando que tal poderia ser possível.
Como seria de esperar fomos imediatamente travados no nosso intuito. O Senhor Pastor barrou-nos o caminho. Carrancudo, metido na sua estrutura física muito pouco desenvolvida, acercou-se de nós, decidido a levar-nos ao Director, pois, observara tudo, abanando a cabeça em atitude de censura e repreensão pelo nosso impensado comportamento evidenciado, digno de uma sanção disciplinar e de uma reprimenda exemplares. Regras são regras! Sentimos o nosso arrojado propósito abalado e pensamos em abortar a nossa atitude. Havia que fugir! E, rapidamente! Só que o insólito surgiu: Ele agarrou-me com quanta força tinha, cioso e compenetrado do seu zelo e da sua missão ali! Debati-me com fúria, tentando libertar-me do diligente vigilante do local e meu obstinado agressor. Fiz um sinal sufocante e aflitivo aos meus colegas para que me ajudassem. Imediatamente começaram a puxarem-me de um lado e o respeitável senhor do outro. – Deixe o rapaz!- aclamavam, sonoramente. As forças eram desiguais e nós éramos dotados de maior energia. Perante aquele confronto, pensei que só haveria uma solução que era largarem-me de imediato, até porque se juntavam mais observadores. A um gesto meu para pararem, deixaram de puxar, o que provocou que o senhor se desequilibrasse e tombasse com ímpeto no chão cimentado, ferindo-se. Encetamos a fuga. Escalamos novamente o portão, perante o olhar incrédulo e atónito de todos e, nesse mesmo dia, terminamos ali as aulas que para nós nunca se haviam iniciado. O pior foi depois. Ficamos angustiados porque o senhor Pastor, com idade para se reformar, foi conduzido ao hospital.
Nesse dia e, nos que se seguiram, permanecemos em casa aguardando o mandato de captura, como se faz com os criminosos responsáveis por actos brutais de selvajaria e até mesmo, animalescos. Esse dia chegou, através de uma carta endereçada ao meu pai. Eu tremia como varas verdes, escondido no meu quarto, por entre um duvidoso estado febril, aparecido à pressa que me não permitia ir à escola e um pavor imenso do que podia acontecer-me. O meu pai guardou a sombria e incriminatória carta no bolso do seu vistoso casaco de pele e saiu, sem fazer comentários de qualquer espécie. Apenas, se virou para a minha mãe e disse: - Vou ali e já volto!
Quando pude pressentir que a porta de casa se tinha fechado atrás de si, suei, contei os segundos um a um, rezei a Deus com um fervor que nem uma beata assumida faria, passei por todas as cores e, por fim, arrependi-me de ter nascido dotado que era de instintos maus e condenáveis para um miúdo de onze anos. A minha falta de sossego e de calma perduraria até ao regresso do meu adorável pai. Entretanto, perpassaram por mim sensações muito perturbadoras.- O Senhor Pastor teria morrido? Estaria em coma ou inválido para sempre? Teria resistido ao embate no chão? Quando seria o funeral? E eu deveria comparecer?- pensei, remeloso e inundado de lágrimas sentidas que me caiam pela cara abaixo. Nesse dia, jurei emendar-me e nunca mais pactuar com a minha mania de fazer asneiras e desacatos que me ferviam no sangue e faziam parte da minha maneira de ser.- É imperioso que mude, não me resta fazer outra coisa! Se esta mania não pára ainda tenho um dissabor grave!- pensei, atemorizado e inconsolável pelos actos incontroláveis que, às vezes, me pareciam assolar e chamar, irresistíveis, tentadores a uma conduta e a um propósito absolutamente condenáveis, recriminatórios e sem desculpa possível.
Nisto, a porta de entrada abriu-se. O meu pai e progenitor entrou e, com um ar grave, mas simpático dirigiu-se ao nosso encontro. Ao passar por mim sorriu e perguntou se eu estava melhor.- Tens uma bela e acolhedora escola!- disse. – Conheço o teu Director há imenso tempo e andou a mostrar-me todas as instalações. Fiquei visivelmente bem impressionado. Sabes, penso que deverias aproveitar e, agora, já compreendo porque és um bom aluno. Tens óptimas condições de trabalho!- disse, de forma aprazível e com uma imensa satisfação nos olhos e no rosto. De início, pensei que o meu pai estava a ironizar, mas ele nunca faria tal. Amava demasiado as pessoas para brincar ou gozar com quem quer que fosse. Senti um conforto imenso e um arrependimento enorme. Então tudo estava bem! O Senhor Pastor não morrera, devia estar vivo e bem vivo. Abracei o meu querido pai e disse-lhe que já estava melhor. Amanhã iria à escola. Ele não compreendeu as minhas tão rápidas melhoras e a minha desmedida satisfação, naquele momento. Anuiu e disse que estava bem. Passou por mim em direcção à cozinha, onde a minha mãe se encontrava a preparar o jantar, mas antes parou e virando-se na minha direcção, disse:- O Director queria conversar comigo sobre alguma coisa, mas esqueceu-se. Disse-me que não deveria ser importante, senão não se esqueceria.
Senti um sufoco, seguido de um alívio que durou até de manhã.
Quando cheguei à escola a primeira pessoa que vi foi o senhor Pastor na sua obstinada ocupação. Agradeci a Deus e o que Ele tinha feito por mim.
A má acção fora ignorada e esquecida! Relembro-me vagamente que mesmo depois do meu pai ter ido à escola, fui chamado ao gabinete do Director que me puxou levemente a orelha e me mandou embora. Foi como uma benção ou uma festa para mim. A partir daí, nunca mais encurtei as distâncias e entrei sempre pelo portão dos rapazes, atrasado ou com muito tempo para chegar às aulas.
O Senhor Pastor e este acontecimento perduraram sempre na minha memória, inesquecíveis e bem visíveis num arrependimento verdadeiro e sincero.
Nunca mais esqueci o senhor, obstinado defensor e vigilante do portão das meninas, a que não tínhamos acesso!