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Aconteceu no Porto. Na altura, na longínqua cidade do Porto, onde acivilização ressurgia em todos os domínios: cultural, social, político ehumano. A minha cidade de Vila Real onde nasci, cresci e, onde sempre morei, estavaimensamente distante do Porto. Adorava-a imenso, também por isso! O autocarro que transportava a nossa equipa de basquetebol, representativa danossa cidade, ou melhor, do nosso Liceu, arfava, serpenteando na velha e caducaestrada esburacada e cansativa de se suportar, fazendo-nos pensar a todos quejamais chegaria ao seu destino. Para nós a estrada era interminável! Sem fimvisível aos nossos olhos! A nossa finalidade era participar num torneiointer-escolas naquela cidade, longe da pacatez e do sossego que sentíamos comalegria e regozijo em Vila Real. Mas era um contacto humano salutar eenriquecedor por escasso tempo e serviria para trocar experiências comuns,jovens que éramos. Iríamos jogar com o Liceu Garcia da Orta, os Liceus dascidades de Viana do Castelo e Braga e o Liceu de Bragança, único queesperávamos vencer. Com as outras equipas as forças eram muito desiguais. A equipa do Liceu Garcia da Orta era composta por jogadores de treze e catorzeanos como nós, mas a sua aparência era de rapazes de dezoito ou dezanove anosque já competiam nos escalões federados mais avançados, conquistando aquiexperiência e rodagem para futuros confrontos mais a sério. Só este factoassustava qualquer um. Nunca compreendi verdadeiramente como poderia aconteceraquilo! Também não interessava porque uma simples reclamação poderia levartudo a perder. Eles eram mais poderosos em tudo. Até no bilhete de identidadeque ostentavam com determinação e confiança, em que a barba começava adespontar na fotografia exibida, apresentava agora tão rapidamente aos nossosincrédulos olhos, uma imensidão de pêlos nos rostos à nossa frente que oscobriam quase completamente. Era de pasmar o seu súbito desenvolvimento emtão pouco tempo! Questionávamo-nos como crescera assim e, a nós, não! Apessoa parecia não compatível com a fotografia! Duvidávamos da suaveracidade! Mas o silêncio era total em nós! E em altura? Raramente oszelosos dirigentes seleccionavam um rapaz que não tivesse mais do que um metroe oitenta! Autênticos postes, escolhidos minuciosamente! Só de olhar paracima, mesmo antes de jogarmos, sentíamo-nos pequeninos, minúsculos, em facedo que presenciávamos e das imponentes figuras. Até já à partida, em facedestas evidências demonstradas, contávamos com o insucesso da nossaprestação desportiva, antes do jogo se iniciar! Era a área, como secostumava dizer, que intimidava, imperando neles e que representavam naperfeição! A nossa dignidade seria alcançada se conseguíssemos que nãochegassem aos cem pontos! E isso era extremamente difícil de conseguir, dadasas circunstâncias de supremacia clubística bem patente e tornada visível. A estrada divisava-se com dificuldade à nossa frente perante a fortetrepidação do impacto das rodas do autocarro nas inúmeras pedras e buracosexistentes. O autocarro tropeçava nas falhas do asfalto, balanceando nodeplorável piso. Era uma verdadeira gincana a que assistíamos, impávidos, àmercê da perícia do condutor. Os meus colegas menos habituados a estasandanças vomitavam pelas janelas, enquanto outros deitavam a cabeça de forapara respirar o ar puro da Serra. Ainda não haviam chegado as novastecnologias e, com elas, o angelical e divinal ar condicionado dos dias dehoje. Uma coisa era certa: A bela e majestosa Serra do Marão estava isenta de culpa,erguendo-se de um e do outro lado. O cenário que ela nos proporcionava eradeslumbrante, espraiando-se lá do alto numa visão fantástica. A Serra estavasilenciosa, expectante, ao que lhe iam fazendo. Limitava-se, por vezesincompreensivelmente, a aceitar, remetida a si mesma. Parecia sofrer pelosmaus-tratos que a incomodavam no seu acesso e mereciam um urgente cuidado e umaatenção de melhor trato, tornando-a hospitaleira, como sempre imaginava vir aser um dia. Aquela estrada decrépita que ziguezagueava à sua volta não adignificava, nem a prestigiava! A sua existência ancestral e de deslumbreestético mereciam maior preocupação e atenção! O progresso havia de surgirum dia, para bem ou para mal!- pensava em surdina. Em plena Serra do Marão, a Pousada sempre fôra uma referência visível láno alto, estrategicamente bem colocada como que observando tudo o que ocorriaali, para depois lhe confidenciar, num sussurro comprometido, mas energético,pleno de vitalidade e de transparência cúmplice. Era o marco daqueladeplorável estrada! A vigilante estalagem daquela resplandecente Serraamparava-a para que nada de mal lhe viesse a suceder. Era assim que eu as via,sempre lado a lado, inconformadas com a estrada, mais parecendo esta, umcaminho de acesso de animais, desprestigiante, um acesso que não mereciam demodo nenhum, pela beleza natural e ímpar que a Serra brotava e emanava portodos os lados, por todos os cantos, até nos mais recônditos e agresteslugares. Quer no trajecto para Vila Real, quer na deslocação para o Porto, a Pousadaservia como fronteira. Quando se viajava em direcção a Vila Real, uma vezchegados à Pousada sentíamos que o mais difícil já ter sido percorrido,sentíamo-nos já em casa, já em Vila Real. Quando nos dirigíamos para oPorto, o sofrido caminho começava ali. Deixáramos para trás Vila Real.Apesar de ainda distante da minha cidade, a Pousada funcionava assim! Estaestrada decrépita e sofrida apresentava-se para mim desta maneira! Agora quequase ninguém a parece utilizar, distante no tempo, revejo-a, recordo-a assim. Com um porte penoso assumido, lá íamos andando enfrentando as contrariedadesda estrada.. Em breve, avistaríamos Amarante e, depois, a civilizaçãoencarregar-se-ia de nos proporcionar o resto. O resto era uma melhor estradaaté ao Porto! Mais fácil de viajarmos, mais fácil de suportar. O progressoacabaria por interceder a nosso favor de forma inevitável, expondo melhorescondições aos seus viajantes. Exigia-se cada vez mais uma descentralizaçãourgente e necessária do poder nas grandes cidades que também nos contemplassea nós, que também nos ajudasse. Chegáramos ao Porto! Ficaríamos alojados no Colégio Brotero, em Vila Novade Gaia. Era um colégio, que não sei se ainda existe, exclusivo para rapazese situado mesmo no coração daquela cidade. Admitia alunos internos também. Foi então que aconteceu! Fora uma emergência que não podia esperar! Quando já tardiamente, paramos para descansar e comer alguma coisa, o nossoestimado colega Inácio precisou de fazer as suas necessidades de carácterfisiológico, urgentes. A travessia acidentada da Serra havia motivado esteimpulso, inadiável. Como não havia um quarto de banho, aflito que seencontrava e, porque estas coisas não podem esperar, encontrou um lugaradequado atrás de uma estátua que não me recordo da figura ali evocada pelosseus heróicos feitos, de certeza meritórios, mas mesmo erguida algures nocentro do Porto. Não achamos nada de estranho na conduta do nosso companheiro,transmontanos de raça que éramos e, orgulhosamente habituados que fôramosassim, desde tenra idade! Para mais as necessidades mais urgentes eram assimresolvidas, naqueles tempos! O pior veio depois. A noite caía, sem pressas. As lojas comerciais começavam a fechar, ao ritmocadenciado de um dia cansativo, vivido por aquelas honestas e trabalhadoraspessoas. O movimento frenético e intenso, como é o das grandes cidades e,esta não era excepção, começava a abrandar. Nós queríamos prosseguirviagem, rumo ao nosso destino, pois, já nos aguardavam no Colégio para jantare depois descansar. Só o Inácio não aparecia! Que teria acontecido ao pobrerapaz?- inquiriamo-nos preocupados e olhando o relógio. Que teria sucedido?Porquê tanta demora?- eram as nossas perguntas perante a ausência doInácio.. Foi então que resolvemos enviar um mensageiro para se inteirar dasituação e da razão daquele atraso. Lá foi o Augusto, eleito mensageiroque, escorreito e desenrascado, foi saber do paradeiro do demorado jovemdesaparecido subitamente. Soou o alarme! O mensageiro que era o Augusto trouxea desastrosa notícia. O Inácio havia escorregado e caíra, mesmo em cima domotivo das suas preocupações de há pouco. Ainda se encontrava lá sentado,inconsolável e cheirando muito mal. Aquela prestação acabara em mal!Plenamente solidários com o que sucedera ao Inácio,, sérios e compenetrados,sentimos que deveríamos agir em seu socorro. Deveríamos efectuar algo. Mas, oquê? O diligente Augusto avisou: - O cheiro é muito intenso! Ninguémaguentará!- exclamou, aflitivamente. A resposta surgiu da parte do brincalhãoe sempre bem disposto Queijo: Há que comprar umas calças e desfazermo-nos dassuas, conspurcadas e muito mal cheirosas que estão!- exclamou, convicto de terresolvido o problema que nos assolava e preocupava a todos. Num ápice, juntamos as economias que tínhamos e entramos todos, os vintejogadores e mais três dirigentes porta a dentro de uma loja desportiva paracomprar umas calças de fato de treino e, assim, resolver o caso pendente quetínhamos entremãos. Ao ver aquela gente toda invadir a sua loja, osvendedores entraram em pânico. Ofereciam-nos tudo e mais alguma coisa, desdeque lhes poupássemos a vida. Pensaram que era um assalto! Quando lhesexplicamos ao que íamos, descansaram e lá nos venderam umas calças baratas,sorrindo entredentes. O mensageiro Augusto foi incumbido de levar as calças novas e salvadoras aoinconsolável Inácio. Como precaução tapou o nariz e levou um saco parameter as velhas, desgraçadas e obsoletas calças, provocadoras de tudo aquilo.Uma vez feita a troca, o Augusto fugiu para dentro do autocarro, acautelando asua saúde e respirando o ar puro interrompido na missão que levara a cabomomentos antes. Sentia-a indisposto e prestes a cair, pelo cheiro nauseabundorespirado. Agora, pareço estar a salvo!- pensou, para consigo. -Que fedor! O condutor do autocarro estava impaciente, depois de inteirado do sucedido.Queria prosseguir a sua viagem, pois, já se fazia tarde. Foi então, que por trás da estátua surgiu sorridente o Inácio. Aanormalidade residia no conteúdo de um saco que trazia e, do qual, não sequeria separar nem por nada. Todos pareciam desmaiar por onde ele passava. Eraum cheiro sufocante, de arrepiar o mais habituado ser a estes cheiros. Cheiravamesmo mal! E ele não fazia questão de se privar dele, nem do seu mais queprecioso conteúdo Era seu! Fora uma prenda da sua mãe. Eram umas calças deestimação, de que não se poderia separar por nada deste mundo! Surgiu um grave dilema. O condutor recusava-se a deixar entrar o conteúdo dosaco no autocarro. O Inácio recusava-se a prosseguir viagem sem o saco! Oimpasse durou, ainda alguns instantes. Foi então, que o Queijo sugeriu:- OInácio viajaria com o saco de fora de uma das janelas do autocarro, nãoincomodando nenhum dos viajantes! Todos concordaram! Assim, não morreriamsufocados! Até o condutor anuiu, algo hesitante. De início custou um bocadinho suportar aquele cheiro, mas lá prosseguimos aviagem rumo a Vila Nova de Gaia e ao Colégio Brotero, onde iríamos ficar umou dois dias. Por onde passávamos as pessoas protestavam. Umas, gritavam paranós obscenidades, impropérios, descontentes com o cheiro. Outras, atónitas,criticavam abanando a cabeça em atitude de censura. O que se tornava mesmoevidente a todos era: cheirava mesmo mal! Cheirava mesmo muito mal! Mesmoagora, bem distante daquele momento, recordo-me perfeita e nitidamente, podendoafirmar sem exageros e com toda a sinceridade: Cheirava mesmo muito mal! Nuncavira uma coisa assim! Era um cheiro intenso de cair para o lado! Impossível derespirar! Sentido a grande distância!
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