As caricas deslizavam ao longo do passeio empedrado da rua. Eram multicolores, policromáticas, brilhantes, belas. Eram muitas. Forradas a preceito. Tinham nomes de ciclistas. Era o Joaquim Agostinho e todos os consagrados ciclopedistas da altura. Tirávamos as rolhas que faziam parte das latas, como costumávamos designá-las, e decorávamo-las com um tecido da cor do clube que o desportista representava. Com um gesto preciso, através dos dedos indicador e polegar, impeliamo-las, fazendo movimentá-las para a frente. Dava gosto vê-las, ao longo da rua. Era o Eduardinho Corredor, o meu irmão João, que tinha mau perder, o Bernardo, o José, o Inácio e muitos mais. Nessa altura a rua enchia. Todos queriam participar. Dar vida e alegria à vitória que representaria a admiração e a glória perante os outros. Havia pequenos conflitos. Todos queríamos ser o Joaquim Agostinho, ídolo da altura. Por vezes a zaragata envolvia-nos. Tirávamos à sorte, mas acontecia que a dada altura, apareciam na corrida cinco ou seis Joaquims Agostinhos, pois, todos tínhamos um. Não importava! O que interessava era que ele ganhasse. Nesses dias até a avó Maria, minha mãe, a D. Fagundes, mãe do Eduardinho Corredor, a D. Albertina e a empregada, Josefina, vinham ver e aplaudir. Pensavam- Pelo menos estão entretidos e não fazem asneiras! Como se fizéssemos asneiras! Éramos tão pacatos. Somente, em dadas alturas subia-nos o sangue à cabeça e perdíamos o controle de nós próprios. Era normal. Só que elas não compreendiam isso. O problema, por certo, residia na nossa idade. Por vezes, até éramos bons de mais, mas isso não viam elas. Era, de certeza, falta de credibilidade nos nossos actos e em nós. Isso é que era. Não viam em nós simples crianças inocentes, mas queriam que os imitássemos e assumíssemos o estado de adultos, quando ainda era muito cedo para o fazer. E, além disso, tínhamos que fazer qualquer coisa que nos despertasse a curiosidade. Bem ou mal, o mal não o víamos em nenhum lado e só restava o bem. No fundo éramos incompreendidos, isso é que era. E, para além disso, tínhamos as nossas aventuras que nos eram indispensáveis ao crescimento físico e mental saudáveis. Se pensassem um pouco poderiam facilmente tolerar as nossas diabruras, mesmo condenáveis e recriminatórias, mas isso era de mais, não pactuavam nitidamente com elas e só viam o bem à sua frente, nos seus horizontes repletos de regras e normas sociais e cívicas de um bom comportamento assumido a toda a hora.
De súbito, aconteceu o momento já habitual, tantas vezes repetido. O Joãozinho, o meu irmão mais velho, o João, ia em último lugar com a sua equipa, encolerizado e revoltado. Não conseguia ter destreza com os dedos e despistava-se facilmente, pelo que era sempre penalizado. Coitado, não era culpa dele era dos dedos. Chegou-se mais à frente, onde iam os ciclistas fugitivos, nome dado para aqueles que na vanguarda do grosso do pelotão dos corredores com hipóteses de vencer a corrida e, zás!, desferiu-lhes um violento pontapé. As caricas voaram rua abaixo, espalhando-se por todo aquele espaço e a etapa teve ali o seu epílogo.
Ninguém lhe disse nada. Era o seu mau feitio que vingara e, que nós compreendíamos. Ele queria vencer, chegar em primeiro. – Foi justo! Fizeste bem! Já estávamos à espera disto.- dissemo-lhe, dando-lhe umas palmadas nas costas, em sinal de aprovação. É que ele ia em último, com toda a sua equipa! O acto do simpático Joãozinho foi aplaudido. Ele resmungou algo imperceptível e foi-se embora sem apanhar as latas. Era usual e estávamos já habituados. Acontecia também quando jogávamos futebol. Quando perdia chutava as pedras que eram as balizas e o jogo terminava. Constatávamos que nada havia a fazer e aplaudíamos a atitude. Aplaudíamos sempre! O meu irmão João nascera para vencer!
Ainda, no que concerne às nossas corridas de latas recordo-me de um episódio não muito risonho. Diria mesmo, catastrófico!
Relembro-me de minha mãe chegar a casa com um casaco lindo, belo como ela. Era encarnado, como se dizia na capital, aqui diz-se vermelho. Estava surpreendente, magnífica mesmo, a minha mãe. Não pude evitar reparar, apesar de ser uma criança, que meu pai, sempre sóbrio, recatado, mas muito lúcido, lhe deitar um olhar cativado, direi mais enternecido, pelo canto do olho, sorrindo agradado, não simplesmente, pela bonomia que minha mãe punha em tudo, mas também, pela imensa candura e doçura bem expressas e delineadas nas suas feições. Olhei! Minha mãe estava linda! A espectaculosidade, a beleza cromática daquele casaco servia plenamente para a equipa que ma faltava decorar, pensei para comigo. Não me podia escapar! Era mesmo aquela. Viva e alegre. Não tinha dúvidas nenhumas. Acrescentando mais àquela evidência, quando se me metia algo na cabeça tinha que o conseguir. Eu era assim. Somente esperava que a beleza majestosa e intensa do casaco e de minha mãe compreendessem que mais altos valores surgiam naquele momento. Eu tinha que forrar a equipa. Foi à tarde. O casaco estava pendurado no armário do quarto dos meus pais à espera que a dona deslumbrasse o Mundo, direi mais, deslumbrasse o Universo todo com a sua esplendorosa afirmação e aparição. A altura era oportuna. Ninguém se encontrava em casa e o silêncio marcava presença. Isento de testemunhas incriminatórias, deslizei, sub-repticiamente para lá e entrei. Lá estava ele! Que belo! Que cor fascinante! Estava embevecido. Não faria mal tirar um bocadinho, como eu fazia às doçuras que minha mãe arquitectava na cozinha e que aguçavam o meu paladar sempre insatisfeito. Ninguém notaria. Decididamente peguei na tesoura e, mesmo no meio, zás!, cortei o pano, deixando o casaco com uma ferida apenas, aos meus olhos. Estava feito. Se calhar, depois, poder-se-ia disfarçar facilmente. Eu já me encontrava servido. Corri para o pelotão das caricas e, tirando a rolha, equipei alegremente o ciclista que me faltava. Saí para a rua e expressei o meu contentamento mostrando-o a todos.
Já estava feliz, muito feliz, quando fui surpreendido por um grito lancinante, desesperado mesmo que parecia da minha mãe, que entretanto chegara a casa. Corri esbaforido. Aflito. Teria acontecido alguma coisa?- pensei, preocupado. Quando me acerquei dela, constatei o motivo daquele alvoroço. Fôra o casaco e o atentado nele acontecido. Fôra denunciado o meu acto inocente! Por quem? Nunca o soube, nem interessava. Sei, que minha mãe pedia explicações, tirando o chinelo. Nesse dia levei umas chineladas que me entristeceram, incompreendido. Apenas tinha tirado um bocadinho! Aprendi a lição e, a partir dessa altura, estimei sempre os casacos, tratando-os com cuidado e, nunca mais, lhe desferi golpes ou feri de cortes que, segundo minha mãe, eram de morte implacável.
As nossas corridas de caricas imortalizaram-se e, ainda hoje, no vazio da minha vida, me apetecia voltar a encontrar as latas e voltar a jogar, voltar a brincar. Dar vida às nossas peripécias infantis que representaram um capítulo importante da minha infância. Apetecia-me fazer renascer o momento, vivê-lo outra vez, na sua beleza transparente e pura de imensa plenitude, inesquecível para mim!