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Campanha do Agasalho 2009

Friday, February 16, 2007

Recordações 1 - Falar


Recordações 1 - Falar

Recordo agora aquela roda infantil.
A sua imagem baila-me no olhar, nitidamente. O instante sôfrego de magia, de efusiva alegria inocente e ingénua.
Dou-lhe vida. Uma vida irreal que só eu vislumbro e assumo como minha.
- Real!... Real!... Real!...- era o cântico pronunciado, por aquelas irreverentes vozes, em uníssono.
- Re...al!... – Repeti com elas, num grito bem audível, mas tímido, acabado de sair do mais profundo da minha alma.
- Falou! Ele falou!- exclamou a minha mãe, com um desmedido contentamento, ainda esfregando os tímpanos para se certificar se ouvira bem e arregalando muito os olhos, perante a perplexidade de todos.
- O meu filho falou!
Parece que ainda a vejo, abraçando-me, abanando-me contra o seu peito, mostrando-me o seu afecto e satisfação.
A hilaridade instalou-se e propagou-se a todos aqueles familiares rostos.
Foi geral! Os sorrisos encheram a enormidade das paredes da casa, que sussurraram entre si com alegria, elas também.
Foi assim que comecei a falar. Foi assim que comecei a nascer para a vida. Foi assim que comecei a vivificar e a interessar-me pelos seus encantos e mistérios, pela sua surpreendente odisseia e pelo trajecto desajeitado com que iniciei a minha controversa existência. Foi naquele momento!
Relembro-me, agora, em que vacilo, frente a frente com o Mundo e com a sua imensa vastidão de beleza e poesia que me tornaram distante e vazio.
Aconteceu!
Foi em casa da minha avó, repleta de segredos e de vida. Segredos existentes, inconformados no tempo e, que agora, mexem, agitam-se, ganham um lugar importante e indispensável no meu muito preenchido subconsciente.
Apanhou-me! Apanhou-me desprevenido e um pouco atarantado, mas foi como um relâmpago de recordações faiscando na minha mente. Visíveis. Escondidas no tempo e ansiosas, pacientes, aguardando a sua vez para se tornarem expostas, envolventes, metamorfoseados agora, à luz cintilante dos toscos candeeiros acesos.
Rodearam-me. Afagaram-me. Reconfortaram-se. Saiu-lhes um pesadelo da cabeça.
- Falou!...Ele falou! Finalmente!...- Disseram, ainda incrédulos, sôfregos.
Minha mãe tinha o mesmo nome próprio e o mesmo apelido da minha avó: Maria Pena. Chamavam-lhe Mariazinha e à minha avó: avó Maria, para não haver coincidências e distinguirem-se uma da outra.
- Real! Real! Real! - Disse.
Constituíram as minhas primeiras palavras que repeti, inebriado pelo desejo de os satisfazer.
Afinal eu estava ali.
Estava a falar para eles, para as suas preocupações, para os seus escondidos e rendidos pensamentos, para adultos vergados pelo peso da responsabilidade.
É noite quando escrevo.
Os meus filhos agitam-se antes do sono. Pedro e Tiago. Tiago e Pedro. Não importa a ordem.
Tenho-os a ambos no meu coração de igual forma.
Preciso de fazer isto, mas desisto.
Chamam-me!
Necessitam da minha presença junto deles que os conforte e os afague.
Talvez, amanhã, consiga. Para já resigno-me.
Vou aconchegar-lhes ternamente os alvos lençóis junto ao pescoço e deitar-me. O cansaço e a penumbra existentes na hora já avançada sacodem-me.
Até amanhã!
A vida é mesmo assim!
Deslumbrante, solidária e apaziguadora.
Repleta de surpresas e de inesperadas situações.
A noite e o seu silêncio criam-me fantasmas de insegurança.
No entanto, preciso deles!
Vivo com eles, pois, alimentam-me os sonhos, as divagações e fazem-me pensar.
Amo-os muito.
Mesmo muito!

Pena, Junho de 2004