As caricas deslizavam ao longo do passeio empedrado da rua. Eram multicolores, policromáticas, brilhantes, belas.
Eram muitas. Forradas a preceito. Tinham nomes de ciclistas. Todos os consagrados ciclopedistas da altura.
Tirávamos as rolhas que faziam parte das latas, como costumávamos designá-las, e decorávamo-las com um tecido da cor do clube que o desportista representava. Com um gesto preciso dávamos-lhe movimento, impulso, com o dedo, calçada abaixo.
Dava gosto vê-las, ao longo da rua.
Era o Alfredinho Corredor, o meu irmão, o Joãozinho, que tinha mau perder, o Jonel, o Paulo, o Tero, conceituado médico de agora, e muitos mais.
Nessa altura a rua enchia. Todos queriam participar. Dar vida e alegria à vitória que representaria a admiração e a glória perante o nosso Mundo. O nosso Universo pessoal.
Nesses dias até a avó Maria, a minha mãe, a D. Odete, a mãe do Alfredinho Corredor vinham ver e aplaudir. Inúmeros desconhecidos colocavam-se num varandim anexo à rua e observavam atentos.
Lá pensariam - Pelo menos estão entretidos e não fazem asneiras!
Como se fizéssemos asneiras? Éramos tão pacatos.
Somente, em dadas alturas subia-nos o sangue à cabeça e perdíamos o controlo de nós próprios. Era normal.
Só que elas não compreendiam isso.
O problema, por certo, residia na nossa idade.
Por vezes, até éramos bons de mais, mas isso não viam elas.
E, além disso, tínhamos que fazer qualquer coisa que nos despertasse a curiosidade.
Bem ou mal. O mal não o via em nenhum lado e só restava o bem.
No fundo éramos incompreendidos, isso é que era.
Se pensassem um pouco poderiam facilmente tolerar as nossas diabruras, mesmo condenáveis e recriminatórias.
De súbito, aconteceu o momento já habitual, tantas vezes repetido e…aplaudido.
O Joãozinho, o meu irmão mais velho, ia em último lugar com a sua equipa, encolerizado e revoltado. Não conseguia ter destreza com os dedos e despistava-se facilmente.
Coitado, não era culpa dele era dos dedos.
Chegou-se mais à frente, onde iam os ciclistas fugitivos, nome dado para aqueles que iam na vanguarda do grosso do pelotão dos corredores e, zás! Desferiu-lhes um violento pontapé. As caricas voaram rua abaixo, espalhando-se por todo aquele espaço e a etapa teve ali o seu epílogo.
Ninguém lhe disse nada. Era o seu mau feitio que vingara e, que nós compreendíamos. Ele queria vencer, chegar em primeiro. – “Foi justo! Fizeste bem! Já estávamos à espera disto.” - Dissemos-lhe, dando-lhe umas palmadas nas costas, em sinal de aprovação.
É que ele ia em último, com toda a sua equipa! O acto do simpático Joãozinho foi aplaudido. Ele resmungou algo imperceptível e foi-se embora sem apanhar as latas. Era usual e estávamos já habituados. Se ele fosse em primeiro não fazia mal nenhum, agora em último, não, ele nascera para ser um Campeão e nós entendíamos.
Acontecia também quando jogávamos futebol. Quando perdia chutava as pedras que eram as balizas e o jogo terminava. Constatávamos que nada havia a fazer e aplaudíamos a atitude. Aplaudíamos sempre! O meu irmão Joãozinho nascera para vencer!
Ainda, no que concerne às nossas corridas de latas recordo-me de um episódio muito risonho. Diria mesmo, catastroficamente risonho!
Relembro-me de minha mãe chegar a casa com um casaco lindo, belo como ela.
Era encarnado, como se dizia na capital, Lisboa, aqui diz-se vermelho. Estava surpreendente, magnífica mesmo, a minha mãe. Não pude evitar reparar, apesar de ser uma criança, que meu pai, sempre sóbrio, recatado, mas muito lúcido, lhe deitar um olhar cativado, direi mais enternecido, pelo canto do olho, sorrindo agradado, não simplesmente, pela bonomia que minha mãe punha em tudo, mas também, pela imensa candura e doçura bem expressas e delineadas nas suas feições.
Olhei! Minha mãe estava linda! A espectaculosidade, a beleza cromática daquele casaco servia plenamente para a equipa que ma faltava decorar, pensei para comigo.
Eu tinha que forrar a equipa.
O casaco estava pendurado no armário do quarto dos meus pais à espera que a dona deslumbrasse o Mundo, direi mais, deslumbrasse o Universo todo com a sua esplendorosa afirmação e aparição. Era a minha encantadora mãe!
Ninguém se encontrava em casa e o silêncio marcava presença. Isento de testemunhas incriminatórias, deslizei, sub-repticiamente por debaixo da cama, como um Fuzileiro das Forças de Intervenção da CIA bem treinado e entrei. Lá estava ele! Que belo! Que cor fascinante! Estava embevecido. Era o meu alvo. Não faria mal tirar um bocadinho. Num corte com a tesoura, zás, mesmo no meio! Cortei o pano, Estava feito. Se calhar, depois, poder-se-ia disfarçar facilmente. Eu já me encontrava servido.
Já estava feliz, muito feliz, quando fui surpreendido por um grito lancinante, desesperado e terrífico mesmo, de aflição desesperada que parecia da minha mãe, que entretanto chegara a casa. Corri. Teria acontecido alguma coisa - Pensei, preocupado.
Quando me acerquei dela, constatei o motivo daquele alvoroço.
Fora o casaco e o atentado inocente nele acontecido.
Nesse dia levei umas chineladas que me entristeceram, incompreendido. Apenas tinha tirado um bocadinho! Aprendi a lição e, a partir dessa altura, estimei sempre os casacos, tratando-os com cuidado e, nunca mais, lhe desferi golpes ou feri de cortes que, segundo minha mãe, eram de morte implacável.
As nossas corridas de caricas imortalizaram-se e, ainda hoje, no vazio da minha vida, me apetecia voltar a encontrar as latas e voltar a jogar, voltar a brincar. Dar vida às nossas peripécias infantis que representaram um capítulo importante da minha infância. Apetecia-me fazer renascer o momento, vivê-lo outra vez, na sua beleza transparente e pura de imensa plenitude, inesquecível para mim!
Inesquecível para a minha geração fabulosa! De ouro puro.
É muito bom recordar, sabem?
MUITO OBRIGADO, incomparáveis Amigos (as) gigantes.
Um Bem-Hajam sincero pela VOSSA amabilidade e simpatia.
Gosto imenso de Vós!