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Campanha do Agasalho 2009

Saturday, September 02, 2006

Contos de Família


O meu Avô Augusto

Parece que o estou a ver, o meu avô. Chamava-se Augusto Prieto. Movimentava-se pela casa como uma sombra importante, imprescindível. Era respeitado por todos, familiares e amigos. Professor idolatrado, competente e atento à plena educação e formação dos seus alunos, nunca agia manifestando as suas mais íntimas efusões de afecto, mas elas estavam lá, sempre presentes. Mostrava autoritarismo, segurança nos seus gestos, mas era doce e terno, camuflando uma imensa simpatia e preocupação nas emoções e nos sentimentos para com todos. Era raro vê-lo rir porque sorria. Evitava situações de grande tumulto ou hilariante, comedido e sério que era. Abraçara o seu mister de professor para se dedicar inteiramente a ele, de alma e coração.
Relembro-o agora, fugazmente. Prendera-se a sua fugidia imagem a mim, com contornos de perpétua adoração e veneração. Vejo-o sempre de cigarro na boca, expelindo densas fumaças com regozijo e satisfação. O seu cinzeiro de prata, que era só seu, repleto de beatas apagadas e, que agora, eu guardo carinhosamente comigo por oferta da minha doce mãe. Tinha dignidade, o meu avô, evidenciada nos actos que tomava, agindo todo o tempo de forma sensata e sóbria. A sua dignidade era respeitada porque respeitava a dignidade dos outros. Vivia preso à família e, ainda hoje, parece-me vê-lo esboçando um ténue sorriso de carinho só para mim e ouvir, pelas mais diversas vozes de outros, louvá-lo e enaltecê-lo pela sua conduta intocável e bela em todos os rostos conhecidos e desconhecidos, na cidade que era sua e que eu habito. Meu avô conquistara os corações das pessoas e defendera valores relevantes ao seu bem-estar e à sua vida intensa em felicidade que jamais poderei ignorar ou esquecer. O meu avô Augusto, para os outros, o Professor Prieto, eternizara a sua obra de amor, dedicação e solidariedade que jamais poderão ser ignorados, imortalizados que serão pelo tempo fora, sem desgaste pela inércia avassaladora de ideologias de vanguarda das novas gerações. Disso, eu tenho a certeza inequívoca, sentida e verdadeira. Meu avô Augusto tinha sempre crianças por perto, mas nunca ria, sorria, amava-as com a sua sinceridade, seriedade, com o seu carácter de figura de bem. Amava-as tão intensamente que se esquecia de si próprio ou do riso que guardava e transparecia dentro de si, só para elas. O meu avô abraçava uma capa transparente e pura, dotada de um fulgor amistoso e afável que todos admiravam, mas eu não sei se compreendiam. Eu compreendia. Eu vivia. Eu vivia nessa capa como todas as crianças que o rodeavam, viviam. Era só para elas e, isso, bastava. As pessoas, as outras pessoas perguntavam e intrigavam-se, quando perguntavam onde estava o riso do meu avô. Ele que só sorria. Eu sorria e ele mostrava-se sério, parecendo indiferente e esboçando um sorriso terno e agradecido pela minha cumplicidade. Um sorriso mais sentido no seu interior, no meu interior. Mas, o sorriso estava ali e eu via-o com uma nitidez e uma alegria imensas. É assim que o revejo. É assim que sinto o meu avô. Guardarei sempre com respeito e amor a imagem do meu avô Augusto, para os outros, Professor Prieto.

Não esqueci as suas sestas. Dava-me cinco tostões e as suas sestas eram as minhas sestas. Só conseguia adormecer com os netos no seu coração. Quando me parecia que ele adormecia saia furtivamente da cama sem fazer ruído, agarrando com muita força os cinco tostões na minha mão, pequena ainda, ao mesmo tempo que escondia a minha recompensa e o meu tesouro, amplamente merecidos. Ele sentia-me abandoná-lo e, então, sorria e adormecia feliz, enternecido pela companhia valiosa que lhe fizera.

O meu avô intrigava-me porque nunca entrava na cozinha. Compreendi só mais tarde a razão: Não queria atrapalhar! Respeitava as empregadas profundamente e elas respeitavam-no também, com alguns indícios de temor associado pelo rosto austero, imponente, exigente, mas respeitador quando se lhes dirigia, o que era raro. Sentiam, então, uma ligeira tremura que passava rapidamente. Conheciam-lhe o bom coração oculto e tinham-no em consideração. Ele parecia ignorá-las, o que não correspondia à realidade.

Ao jantar, quando se sentava à mesa no lugar do topo, mandava acender todas as luzes, exclamando com convicção:

- Acendam todas as luzes, enquanto eu for vivo! Quando morrer, para mim, já não fazem falta! Enquanto estiver aqui quero tudo aceso!

E a claridade das luzes propagava-se por todos os cantos da mesa e ele parecia satisfeito, feliz. Já quando dormia no quarto ou descansava nele a obscuridade total enchia-o plenamente. Queria a penumbra completa, se calhar para lhe facilitar o descanso ou para ter paz absoluta para consigo próprio naquele recanto íntimo, só dele.

Quando o meu avô morreu apagou-se uma chama no meu olhar e no meu coração. Não compreendi bem, mas senti que uma parte dele encarnou em mim. Alguma coisa ficou dele em mim. Não tive um desgosto, mas senti um orgulho desmedido em tê-lo conhecido e ter partilhado do seu afecto, do seu amor e do seu forte carácter que impunha em tudo o que fazia. Amá-lo-ei sempre, nem que seja em sonhos, o meu avô Augusto, para os outros, Senhor Professor Prieto! A sua sombra baila-me cá dentro, no pensamento mais escondido do meu ser, com pena de ele não ser eterno, pois, há certas pessoas que deviam ser eternas, sempre presentes em nós pelos actos nobres, pelo temperamento, pela entrega aos outros. E ele era uma delas! Se ao menos lá no alto Deus ouvisse e concedesse essa dádiva.

Só me apetece dizer ternamente:

- Até sempre, querido Avô!

Poliedro

(O nomes das pessoas foi alterado por razões que facilmente se compreenderão)