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Saturday, January 09, 2016

A Magia do Senhor Gonçalves!

A Magia do Senhor Gonçalves!



Será que ainda se lembram do Senhor Gonçalves, pretenso Benfeitor de nós. Aquele que disse, tentando mostrar a sua sabedoria nos “esgotos” de minha casa.
Sim! Ele sabe tudo. Resolve tudo. Barafusta por tudo. Veste cuecas azuis do ano novo segundo a tradição. A muito custo, diga-se de verdade. Pede sigilo ao mais alto nível.

Hoje, acordei bem-disposto. Muito feliz.

Quando me preparava para levar o “Leite” à minha cara-metade, “barrou-me” à minha passagem por ele. Aos berros, virou-se para mim. Disse irado: - Você que não sabe nada de nada, escondeu-me a minha receita médica para tirar uma radiografia urgente no Hospital. Tenho a certeza. Foi você que não sabe nada. Mesmo nada. Estava aqui mesmo à bocado.

Fiquei perplexo e, com calma, disse-lhe que não tinha motivação, nem interesse em tirar-lhe “aquilo”. A bons modos, ripostei, preocupado: - Oh, Senhor Gonçalves procure bem. Eu não tinha interesse algum em tirar -lhe “isso”.

Ele foi peremptório: - Não minta só podia ser você? Não faz nada de jeito. Não sabe nada de nada.

Depois, de preparar o “Leite” à minha cara-metade e, primeiro tomar o meu. Coloquei-o numa bandeja. Subi as escadas. E, fui ter com aquela princesinha de que tanto gostava. Para mim, era majestosa e muito bela.

Perfeita. Uma delícia olhá-la. Lembrava-me uma “Pérola Preciosa” encontrada há muito. De um valor imenso. De uma beleza de Deusa. De uma ternura de miúda maravilhosa.

Quando me preparava para lhe dar um beijo convincente por ser o meu único amor de sempre. No fundo das escadas escutei um grandioso “tumulto”. Fui ver, apreensivo.

O meu estimado sogro e saber de tudo, gritava “a plenos pulmões” que só podia ter sido eu. Fora cometido um furto. Um grandioso furto.

De novo expliquei-lhe, com compreensão, que não fora eu.

Dirigia-me para a cozinha. Era para lavar a loiça do Jantar. Ficara por arrumar.
Foi, então, que naquela casa se sentiu um silêncio total e benfazejo.

O meu sogro encontrou por trás da mesa da entrada a sua receita que caíra para trás deste mesmo móvel.

Disse-me, mais calmo: - Não foi você, mas poderia ter sido. Você não sabe nada de nada.
Suspirei de alívio. À tarde levá-lo-ia ao Hospital para tirar a radiografia.
Colocou-se à porta de casa, não querendo comer. Desejava ir de imediato ao Hospital. Tinha a receita. Com compreensão. Com animosidade disse-lhe que era meio-dia, podia esperar um pouco mais. O exame era só às quinze horas. Tinha tempo.
A muito custo lá comeu uma sopa. Foi para ao pé da porta de novo. Exclamou, para mim, se ainda demorava muito senão ia a pé os 10km que nos separava do Hospital. Era muito longe.
Rezei a Deus para lhe dar bom senso, porque não desejava esperar 2 ou 3 horas no Hospital para ele ser atendido. As minhas palavras foram escutadas por Ele. Esperou um pouco mais. Só dez minutos e depois tínhamos de ir. Disse-me, com arrojo e alegria que sempre fora muito pontual em todas as situações enfrentadas.
Tínhamos que ir. Ainda disse que eu nunca tinha sido pontual na minha vida toda até ali.
Via-se mesmo. E, que não sabia nada de nada. Irado, ainda referiu que fora eu que a escondera atrás do móvel. Para ele nunca mais encontrar a receita. E, assim, não fazia a radiografia.
Preocupado com as atitudes dele, dei a volta ao carro no largo da nossa casa e disse-lhe, amavelmente, que entrasse. Disse algo impercetível e demorou cinco minutos até estar devidamente dentro da viatura e com o cinto de segurança que não queria por, colocado. As “modernices” não eram com ele. Emitiu ainda alguns impropérios que não percebi.
Durante o trajeto até ao Hospital disse-lhe que esperasse por mim na primeira sala de consultas que eu poria os médicos a par do que acontecia com ele. Fui arrumar a viatura convenientemente num parque de estacionamento esgotado totalmente e quando o estacionei e cheguei ao local combinado com o Senhor Gonçalves, nem vê-lo.
Perguntei, ainda se o tinham visto, ao que me responderam que falava sozinho e já devia estar no local da radiografia que iria tirar. Disseram-me que o local era na Oncologia e que devia acompanhá-lo. Ir ter com ele o mais depressa possível.

Desejava mostrar-me que eu não servia para nada e, por isso, foi andando. Eu temia perdê-lo e nunca mais encontrá-lo ali.

Quando cheguei ao piso de Oncologia lá ia ele, arrastando-se como podia, nada escorreito e, muito lentamente, ao encontro do local onde iria tirar a radiografia. Ao ver-me exclamou: - Que vem fazer? Como chegou até aqui? Admira-me porque não sabe mesmo nada de nada. Se eu não tivesse esta bengala, não me ajudaria porque cairia com estrondo no chão.
Disse-lhe que jamais faria tal coisa. Pela primeira vez vi-lhe um sorriso na minha direção, disfarçado de alegria.
Duas horas decorridas de espera, foi chamado por um senhor muito simpático que me disse que o podia acompanhar.
Tirou a radiografia, contando, infantilmente, a sua vida toda e foi necessário dizer-lhe que agora teria de ficar caladinho. Quando terminou, acerquei-me do médico e perguntei-lhe se se podia saber o resultado. Respondeu-me que não. A radiografia e o seu relatório iriam para a médica de família dele. Quando iniciamos o percurso até à saída dali, enganamo-nos e fomos parar até ao piso de Oncologia subindo inúmeras escadas. Ficou exausto.

Disse-me que eu não sabia nada de nada em todas as atitudes que tomava. Acrescentou que estava muito cansado e que eu devia estar mais porque fui na sua frente apenas para indicar o caminho errado como há pouco. Só não queria era tomar o elevador porque tinha medo que ele caísse, disse-me, insatisfeito e carrancudo.

Chegamos ao carro. Decorreu imenso tempo até lá. Eu entrei e abri-lhe a porta do lado do condutor para ele. Após, dez minutos de tentativas, lá entrou sempre dizendo impropérios deselegantes e grosseiros até ficar sentado ao meu lado. Notava-lhe uma respiração forte. Intensa. Dificuldades em respirar. Senti pena dele. Perguntou-me, ofegante e com receio de que eu me apercebesse da sua fadiga: - Então, isso não anda? Vamos embora que se faz tarde! Coloquei o carro em marcha, sem hesitações e em breve estávamos em casa.
Eram por volta das seis horas da tarde e já era noite. Fui buscar um cesto de lenha e acendi a lareira para ele se aquecer. Disse-lhe que tivesse cuidado e não metesse muita lenha de uma só vez. Fez "orelhas moucas" e passado um bocado gritou como se faz no Douro nas vindimas e se acaba de cortar as uvas e o balde ou cesta estão cheios, grita-se: CESTA! Ele fazia o mesmo comigo e berrou: - CESTA! - E, lá ia eu buscar mais lenha.
Concluí: - O Senhor Gonçalves até era um bom homem, mas sofrido pela vida. Lutara uma vida nas “cepas” do vinho e tivera um trajeto complicado e custoso. Foi para França “a salto” e trabalhou, trabalhou e trabalhou.

Como eu o compreendia.

Foi um episódio marcante ontem mesmo. Para toda a minha vida.
À noite dei-lhe um beijo na testa e pedi-lhe desculpa pelas minhas inconveniências e incompreensão com ele.

Sorriu para mim, como nunca o havia feito, de felicidade e alegria.

Ainda disse: - Você não sabe nada de nada, sabe?
E, quando foi dormir, vi que ainda usava as cuecas azuis da passagem para o ano de 2016 de que não se desfazia delas em nenhuma circunstância da vida por agora. Nem pensar.

Sorri para mim. Iria ajudar aquele senhor até mais não puder.

Diz-me muito!


António Pena Gil  Janeiro 2016

Diário de Família. António Pena Gil, Janeiro de 2016