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Campanha do Agasalho 2009

Monday, July 23, 2018


Um Tiro de que fui o alvo


Nisto um silvo furou o ar. Olhei para baixo e vi uma mancha de sangue mesmo abaixo do meu joelho do formato de uma bala.

Fora atingido!
Eu brincava com o meu irmão nos descampados térreos, anexos ao bairro de habitação económica de Alves Roçadas, onde habitávamos com os meus pais.

Recordo-me perfeitamente que há quarenta anos atrás, a minha querida cidade de Vila Real que foi o meu berço e, perpetuou a minha existência, espraiava-se num imenso descampado aos meus olhos, abdicando do fator civilizacional, longe das suas intempéries desumanas e do falso torpor de progresso a que assisto nos dias de hoje.

A minha cidade cresceu e transformou todos os atos e condutas, impondo uma outra forma de vida e uma outra maneira de abraçar o quotidiano das suas simpáticas pessoas. Sei que foi inevitável, mas a pacatez, a calma e o silêncio das suas ruas, a aguerrida forma de luta dos seus habitantes não se dissolveu, mas teve que adaptar-se à cidade que era a sua. Se nascesse nos dias de hoje, teria forçosamente uma infância totalmente diferente da de outrora.

E, se vivo nesta encantadora cidade, é porque lhe tenho um imenso amor, a ela, e às suas ancestrais tradições que coabitam comigo orgulhosamente, ostentando uma força avassaladora, inesquecível, como num sonho muito belo e real. Adoro a minha cidade pelo que foi e pelo que aprendi com ela. Ela constitui um reduto escondido na minha memória e uma paixão que abraço afetuosamente quando falo com ela, quando falo dela.

É a minha doce e terna cidade que admiro e em quem inspiro todos os meus sentimentos e emoções, pois, tenho a certeza absoluta que os preservará no maior segredo, lacrados e selados de suor e de sangue e misteriosamente conservados no seu seio mais íntimo e secreto.

Quando olho para trás e vejo que vivi sempre aqui, entrincheirado no cheiro das suas inúmeras vielas e absorvendo a sua plena hospitalidade, a hospitalidade do seu povo, sinto raiar nos meus olhos uma alegria e um contentamento desmedidos que vale a pena contar aos meus filhos, aos meus netos e a todos os que agem com verdade e sinceridade, solidários e, prontos a entregar-se de braços abertos a esta gente trabalhadora, sofrida, mas sempre lutadora e honesta.

Como assumido transmontano e, que dizer da Serra do Marão, sobranceira à cidade? Para mim definem-na as palavras: Imponente! Magnificente! Protetora! Vigilante! Bela!
A Serra do Marão parece abraçar e defender com carinho e com a sua imensa beleza a cidade que tanto ama, que lhe dá razão para existir, sentir, tocar e apaixonadamente viver. Sem palavras!

Mas, regressemos à minha infância, à minha infância passada nesta cidade.
Lembro-me que eu e o meu irmão espreitávamos pela janela de casa, esperando ansiosamente que não houvesse vivalma para descermos à rua com o intuito de brincar. Nunca compreendi muito bem porque não alinhávamos com os rapazes dali, mas sinto e estou persuadido a afirmar que não gostávamos lá muito deles. Também não tínhamos nada contra, mas era assim que agíamos!

Ao aperceber-me que levara um tiro, ainda vislumbrei ao longe um rapaz alto, esguio, armado com uma arma de pressão de ar. - Andaria à caça em plena cidade? Mas eu não era nenhuma presa animal? - Pensei para comigo, confuso e com dores no lugar onde fora surpreendido daquela maneira. - Assim como me atingiu no joelho, poderia ter-me acertado num olho ou até na cabeça! – Pensei, ainda incrédulo pela situação algo invulgar de que fora alvo.

Quando olhei de novo para o sítio onde o rapaz se encontrava ainda há pouco, pois, parece-me que o estou a ver, que estou a ver a sua silhueta não identificada, constatei que tinha desaparecido. Ainda hoje, desconheço essa figura que me alvejara e por pouco não havia terminado com a minha existência. Eu, que não fazia mal nem a uma mosca e que tentava sempre agir com sobriedade e bom senso, a muito custo diga-se em verdade, numa atitude esforçada para o conseguir! Arranjei sangue frio, não sei como, para rastejar até casa.

Quando a minha mãe se apercebeu do meu mal, entrou em pânico. Não pediu explicações e não fez nada, aterrada que se encontrava. Pensou baixo: - Tudo acontece a este rapaz! Um tiro, não lembraria a ninguém! Um tiro, parece de loucos! Que irá ser no futuro este homenzinho!

Aconchegada na sua inação e nos seus pensamentos esperou pelo meu pai e pela serenidade que este demonstrava sempre que me acontecia alguma coisa. Lá pensaria para ele que éramos jovens traquinas, em idade para o sermos. O meu pai compreendia as nossas diabruras e, quando chegou, não se preocupou com o acontecido para nossa surpresa. Um tiro é um tiro! Mas ele reagiu bem e levou-me, imbuído da maior calma, à casa de Saúde, mesmo ao pé de nossa casa.


O médico que estava de serviço examinou-me, cuidadosamente. De pronto fez o diagnóstico. Levaria uma injeção anti tétano como precaução e a bala conservar-se-ia no seu lugar. Diagnosticou mais, que não seria operado e que o projétil acabaria por se desfazer no meu joelho com o passar do tempo. Suspirei de alívio e o meu pai penso que também, embora não o demonstrasse.


No dia seguinte, levei a injeção recomendada, das mais dolorosas que até agora me foram administradas e, fiquei pronto para continuar a assustar os meus pais, com o meu permanente comportamento irreverente, próprio da infância turbulenta que eu vivia e que fazia questão de se instalar em mim sem hesitação ou dúvida porque eu era assim. Nascera já assim!

Não havia solução para o meu caso, nem remédios que me curassem!
Por coincidência ou ironia do destino, mais tarde sopraram-me ao ouvido que o meu médico salvador era, nem mais nem menos, que o pai do atirador. O atirador furtivo desta cidade, agindo em plena cidade, nunca o vi, mas vozes afirmaram que se tratava de um adolescente e, um adolescente enfrenta o perigo, enfrenta situações inesperadas, vive problemas de identificação com alguém ou consigo próprio, em resumo: faz asneiras e comete erros! Eu compreendia os erros dos outros que eram os meus erros. Nunca lhe levei a mal o seu ato.

Compreendi-o! Respeitei-o porque se calhar não morri ou não fiquei atrofiado de algum mal.
Por outro lado, que contas prestaria à sociedade aquele progenitor, ilustre figura da cidade de Vila Real, pelo ato violento, grave e impensado do seu filho e educando? E a sua educação estaria a ser correta?

Um sem número de questões se levantaria por certo, que serviriam somente para o atormentar e desacreditar. E isso, eu não desejava a ninguém! Eu era dotado de escrúpulos morais suficientes para entender o que um escândalo deste género poderia desencadear. Nunca soube se este segredo, dito em surdina, correspondia à verdade, mas também não fiz nada para o clarear ou desvendar.


Não sei se agora, tão distante daquele momento, para mim inquietante e insólito, o chumbo ainda se encontra instalado abaixo do meu joelho, mas permanece a lembrança desta situação que sinto vivida por mim e pela sua controversa expressão de incredulidade, acontecida naquele instante, na plena cidade de Vila Real e que não se dissipou da minha memória.

Até um tiro levei! É o que eu designo como uma infância verdadeiramente atribulada de que não tinha culpa! Nenhuma culpa, apesar de só fazer asneiras que o meu adorável pai compreendia e resolvia de imediato, com uma calma ímpar e sempre sorrindo de uma forma cúmplice, sincera e amiga! Nunca entendi o porquê, mas também nunca pensei nisso. O seu sorriso salvador e bem-disposto bastava para eu o adorar! E adorar mesmo! Como reagiria um pai, vendo um filho atingido por um tiro? Desculpem, mas só o meu pai! O meu terno e adorável pai!
António Pena Gil , Fevereiro de 2005