Um Tiro de que fui o alvo
Nisto um silvo furou o ar. Olhei para baixo e vi uma mancha de sangue mesmo
abaixo do meu joelho do formato de uma bala.
Fora
atingido!
Eu brincava com o meu irmão nos descampados térreos, anexos ao bairro de
habitação económica de Alves Roçadas, onde habitávamos com os meus pais.
Recordo-me
perfeitamente que há quarenta anos atrás, a minha querida cidade de Vila Real
que foi o meu berço e, perpetuou a minha existência, espraiava-se num imenso
descampado aos meus olhos, abdicando do fator civilizacional, longe das suas
intempéries desumanas e do falso torpor de progresso a que assisto nos dias de
hoje.
A minha
cidade cresceu e transformou todos os atos e condutas, impondo uma outra forma
de vida e uma outra maneira de abraçar o quotidiano das suas simpáticas
pessoas. Sei que foi inevitável, mas a pacatez, a calma e o silêncio das suas
ruas, a aguerrida forma de luta dos seus habitantes não se dissolveu, mas teve
que adaptar-se à cidade que era a sua. Se nascesse nos dias de hoje, teria
forçosamente uma infância totalmente diferente da de outrora.
E, se vivo
nesta encantadora cidade, é porque lhe tenho um imenso amor, a ela, e às suas
ancestrais tradições que coabitam comigo orgulhosamente, ostentando uma força
avassaladora, inesquecível, como num sonho muito belo e real. Adoro a minha
cidade pelo que foi e pelo que aprendi com ela. Ela constitui um reduto
escondido na minha memória e uma paixão que abraço afetuosamente quando falo
com ela, quando falo dela.
É a minha
doce e terna cidade que admiro e em quem inspiro todos os meus sentimentos e
emoções, pois, tenho a certeza absoluta que os preservará no maior segredo,
lacrados e selados de suor e de sangue e misteriosamente conservados no seu
seio mais íntimo e secreto.
Quando olho
para trás e vejo que vivi sempre aqui, entrincheirado no cheiro das suas
inúmeras vielas e absorvendo a sua plena hospitalidade, a hospitalidade do seu
povo, sinto raiar nos meus olhos uma alegria e um contentamento desmedidos que
vale a pena contar aos meus filhos, aos meus netos e a todos os que agem com
verdade e sinceridade, solidários e, prontos a entregar-se de braços abertos a
esta gente trabalhadora, sofrida, mas sempre lutadora e honesta.
Como
assumido transmontano e, que dizer da Serra do Marão, sobranceira à cidade?
Para mim definem-na as palavras: Imponente! Magnificente! Protetora! Vigilante!
Bela!
A Serra do Marão parece abraçar e defender com carinho e com a sua imensa
beleza a cidade que tanto ama, que lhe dá razão para existir, sentir, tocar e
apaixonadamente viver. Sem palavras!
Mas, regressemos à minha infância, à minha infância passada nesta cidade.
Lembro-me que eu e o meu irmão espreitávamos pela janela de casa, esperando
ansiosamente que não houvesse vivalma para descermos à rua com o intuito de
brincar. Nunca compreendi muito bem porque não alinhávamos com os rapazes dali,
mas sinto e estou persuadido a afirmar que não gostávamos lá muito deles.
Também não tínhamos nada contra, mas era assim que agíamos!
Ao
aperceber-me que levara um tiro, ainda vislumbrei ao longe um rapaz alto,
esguio, armado com uma arma de pressão de ar. - Andaria à caça em plena cidade?
Mas eu não era nenhuma presa animal? - Pensei para comigo, confuso e com dores
no lugar onde fora surpreendido daquela maneira. - Assim como me atingiu no
joelho, poderia ter-me acertado num olho ou até na cabeça! – Pensei, ainda
incrédulo pela situação algo invulgar de que fora alvo.
Quando olhei
de novo para o sítio onde o rapaz se encontrava ainda há pouco, pois, parece-me
que o estou a ver, que estou a ver a sua silhueta não identificada, constatei
que tinha desaparecido. Ainda hoje, desconheço essa figura que me alvejara e
por pouco não havia terminado com a minha existência. Eu, que não fazia mal nem
a uma mosca e que tentava sempre agir com sobriedade e bom senso, a muito custo
diga-se em verdade, numa atitude esforçada para o conseguir! Arranjei sangue
frio, não sei como, para rastejar até casa.
Quando a
minha mãe se apercebeu do meu mal, entrou em pânico. Não pediu explicações e
não fez nada, aterrada que se encontrava. Pensou baixo: - Tudo acontece a este
rapaz! Um tiro, não lembraria a ninguém! Um tiro, parece de loucos! Que irá ser
no futuro este homenzinho!
Aconchegada
na sua inação e nos seus pensamentos esperou pelo meu pai e pela serenidade que
este demonstrava sempre que me acontecia alguma coisa. Lá pensaria para ele que
éramos jovens traquinas, em idade para o sermos. O meu pai compreendia as
nossas diabruras e, quando chegou, não se preocupou com o acontecido para nossa
surpresa. Um tiro é um tiro! Mas ele reagiu bem e levou-me, imbuído da maior
calma, à casa de Saúde, mesmo ao pé de nossa casa.
O médico que
estava de serviço examinou-me, cuidadosamente. De pronto fez o diagnóstico.
Levaria uma injeção anti tétano como precaução e a bala conservar-se-ia no seu
lugar. Diagnosticou mais, que não seria operado e que o projétil acabaria por
se desfazer no meu joelho com o passar do tempo. Suspirei de alívio e o meu pai
penso que também, embora não o demonstrasse.
No dia
seguinte, levei a injeção recomendada, das mais dolorosas que até agora me
foram administradas e, fiquei pronto para continuar a assustar os meus pais,
com o meu permanente comportamento irreverente, próprio da infância turbulenta
que eu vivia e que fazia questão de se instalar em mim sem hesitação ou dúvida
porque eu era assim. Nascera já assim!
Não havia
solução para o meu caso, nem remédios que me curassem!
Por coincidência ou ironia do destino, mais tarde sopraram-me ao ouvido que o
meu médico salvador era, nem mais nem menos, que o pai do atirador. O atirador
furtivo desta cidade, agindo em plena cidade, nunca o vi, mas vozes afirmaram
que se tratava de um adolescente e, um adolescente enfrenta o perigo, enfrenta
situações inesperadas, vive problemas de identificação com alguém ou consigo
próprio, em resumo: faz asneiras e comete erros! Eu compreendia os erros dos
outros que eram os meus erros. Nunca lhe levei a mal o seu ato.
Compreendi-o!
Respeitei-o porque se calhar não morri ou não fiquei atrofiado de algum mal.
Por outro lado, que contas prestaria à sociedade aquele progenitor, ilustre
figura da cidade de Vila Real, pelo ato violento, grave e impensado do seu
filho e educando? E a sua educação estaria a ser correta?
Um sem
número de questões se levantaria por certo, que serviriam somente para o
atormentar e desacreditar. E isso, eu não desejava a ninguém! Eu era dotado de
escrúpulos morais suficientes para entender o que um escândalo deste género
poderia desencadear. Nunca soube se este segredo, dito em surdina, correspondia
à verdade, mas também não fiz nada para o clarear ou desvendar.
Não sei se
agora, tão distante daquele momento, para mim inquietante e insólito, o chumbo
ainda se encontra instalado abaixo do meu joelho, mas permanece a lembrança
desta situação que sinto vivida por mim e pela sua controversa expressão de
incredulidade, acontecida naquele instante, na plena cidade de Vila Real e que
não se dissipou da minha memória.
Até um tiro
levei! É o que eu designo como uma infância verdadeiramente atribulada de que
não tinha culpa! Nenhuma culpa, apesar de só fazer asneiras que o meu adorável
pai compreendia e resolvia de imediato, com uma calma ímpar e sempre sorrindo
de uma forma cúmplice, sincera e amiga! Nunca entendi o porquê, mas também
nunca pensei nisso. O seu sorriso salvador e bem-disposto bastava para eu o
adorar! E adorar mesmo! Como reagiria um pai, vendo um filho atingido por um
tiro? Desculpem, mas só o meu pai! O meu terno e adorável pai!
António Pena Gil , Fevereiro de 2005